Musicais de Hollywood.

Sofro de uma falha grave em minha cultura. Grave, gravíssima. Gosto de filmes musicais. Isso mesmo daquelas coisas cantadas e dançadas de Hollywood.
Não estou a falar de Dançando na Chuva, um clássico dos clássicos do Cinema, falha seria se não o venerasse. Também não falo de qualquer coisa que a Cyd Charisse tenha dançado.

Cyd esta acima de qualquer classificação de gênero de Arte. Ela é Arte.
O deslumbramento de assisti-la flutuar, de assistir sua leveza, de ver a continuidade e harmonia de um movimento para o outro é o mesmo de ouvir Bach ou Mozart. Ver Cyd dançar é como ver uma obra de Michelangelo, de Rembrant, o prazer estético é da mesma ordem. Cyd têm nos movimentos a mesma continuidade harmônica de uma fuga de Bach, tão perfeitos que não se nota sua técnica irretocável.
Cyd está muito acima da arte da Dança. Basta ver como ela se move em Dancing in the Dark na cena no Central Park em Band Wagon do Vincente Minelli. Não se trata de técnica, apesar dela ter muita. Nem de beleza pois Cyd nem é tão bonita assim, na verdade ela é bem o tipo the-girl-next-door. Trata-se de poesia em movimento. Trata-se daquele algo transcendente que só a Arte tem. Ponto.

Mas não é disso que estou a falar.
Falo daqueles musicais exagerados, desbragados, como Funny Face do Stanley Donen com a Audrey Hepburn e o Fred Astaire. Uma coisa improvável, absurda, comovente, linda, que te deixa com um sorriso embevecido do começo ao fim, com o coração leve. Funny é o segundo musical da Audrey, logo depois de My Fair Lady, e como neste ela realmente canta ele é efetivamente seu primeiro musical.

Funny Face foi traduzido no Brasil para Cinderela em Paris. Portugal piorou, colocou mais uma letra L e traduziu para Cinderella em Paris. A diferença é sutil.
Ao invés do substantivo genérico, do nome arquetípico, os portugueses usaram o nome próprio. É como se a personagem do Charles Perrault, ela própria, estivesse em Paris. Mas, ora pois pois, para quem traduziu Dr. Strangelove do Stanley Kubrick para Dr. Estranhoamor isso não é nada. São cinzas.

O filme foi citado em O Diabo Veste Prada. A entrada inicial da Meryl Streep na Runaway Magazine é muito semelhante a da Kay Thompson na Quality Magazine.  Ambas revistas femininas de moda de Nova Iorque, ambos sequenciados em Paris.
Mas param por aí as semelhanças com O Diabo Veste Prada. Funny Face é diabolicamente açucarado, escandalosamente romântico, feliz o tempo todo. Como se não bastasse a trilha musical é do George Gerswhin. 'S Wonderfull ficaria realmente maravilhosa se pudesse ter sido interpretada na época, como o foi bem depois, pelo João Gilberto ou pela Diana Krall, ambos em arranjos do Claus Ogerman. Sonhar mesmo seria um dueto deles dois substituindo o de Audrey e Fred.

Funny Face tem duas assinaturas impressionantes, Givenchy e Avedon.
Os modelos usados pela Audrey foram desenhados pelo Givenchy que vestiu Wallis Simpson, Jackie Kennedy e Grace Kelly. Audrey e Hubert foram grandes amigos, ele criou para ela o perfume L'Inderdit, vestiu-a em Breakfast at Tiffany´s (Bonequinha de Luxo) e Sabrina. Veneninho: Wallis Simpson na hora de casar preferiu um Mainboucher azul, uma ingrata essa duquesa. Givenchy definiu o estilo Audrey, um estilo que até hoje, sessenta anos depois, permanece atemporal, clean, elegante. Um aristocrata francês vestindo a funny face belga. A união dos dois é icônica.

Outro monstro sagrado por trás das lentes, Richard Avedon. Um dos maiores fotógrafos do século, o maior retratista, o maior de Moda. Foi diretor de arte do Harper´s Bazaar, fez campanhas para Versace, Calvin Klein, Colgate e Revlon, fotografou Eisenhower, Picasso, Marilyn Monroe, Andy Warhol, Nureyev, Catherine Deneuve, os Beatles. A Louis Vuitton criou uma maleta exclusiva para ele. Veneninho: Coco Chanel nunca lhe perdoou uma foto onde ela aparece com o pescoço horroroso, ho-rro-ro-so. As belíssimas fotos e freezings da Audrey, a abertura do filme, a definição e o tratamento de fotografia de Funny Face são dele.

George Gerswhin, Audrey Hepburn, Fred Astaire, Hubert de Givenchy, Richard Avedon já seriam de per si suficientes para definir uma obra de arte, um museu, um monumento. Tê-los todos juntos, reunidos numa folie a cinq musical de Hollywood é puro deleite. 
Para ficar apenas no começo, a cena musical em tons de vermelho, numa sala escura de estúdio fotográfico, é tão delicada, tão alegre, tão feliz que você fica se perguntando o que há de errado com sua vida, com seu dia-a-dia, com o mundo em que você vive.
Essa é exatamente a magia desses musicais. Puro entertainment, você fica leve, sorrindo, alegre, bregamente feliz.
Aliás existe coisa mais brega que a felicidade?


(*) "brega" = mais ou menos "pirosa" em português de Portugal.