Uma terra, um pássaro, uma menina

Três fados, três destinos. Uma terra, um pássaro, uma menina.
Portugal.
Uma terra no limite das terras, uma terra no fim das terras. Para além, nada mais. Só o horizonte, a imensidão do mar, os azuis. O desconhecido, o medo, a esperança. Na razão desta terra, deste povo, um destino. O fado de seguir adiante, de se aventurar, de descobrir, de talvez nunca voltar. Subir aos barcos, se lançar ao mar, se levar ao vento. Sentir saudade.
Uma Gaivota.
Não há pássaro que melhor represente esta terra. Vivendo nos limites da terra e do mar, ora ao mar, ora à terra. Branca como as velas dos barcos, velejando nas brisas, se levando ao vento, ora só, ora acompanhada. Tirando do mar e dos ventos seu viver.
Vahine.
Uma menina de mar e de vento. No sangue a rebeldia do avô Zarco, primeiro navegador de Sagres, descobridor da Madeira. Na identidade o nome de um barco. Na alma a poesia dos ventos, no sangue o gosto pela liberdade. Na vida uma saudade. Uma menina feita no além-mar de uma terra, nascida no além-mar da outra. Ligando nas duas o sonho do Infante.
Três fados, três destinos. Todos iguais. No mar, nos ventos, nas saudades.

Quinta-feira, 10 de Março de 2011.
A menina estuda Animação, cinema de animação. São 13:00hs, ela sai da escola próxima ao Mercado da Ribeira em Lisboa. Caminha em direção ao Cais do Sodré. Quando atravessa a avenida 24 de Julho ela nota um bando de gaivotas voando baixo, em círculos, logo acima da rua. Abaixo no chão, uma gaivota agonizante. Atropelada por um carro.
O sangue lhe regela. A menina corre para a gaivota, o trânsito para. Ela vê a gaivota caída. Um grupo de jovens ao redor grita:
- Está viva.
A menina se lembra de ter visto próximo à sua escola uma casa com uma placa: Associação Protetora dos Animais. Corre desabalada para lá. Parte do grupo a segue. Quando lá chegam já encontram um senhor que tinha se antecipado, chegado antes. Vendo os jovens a chegar o senhor olha espantado para o grupo.
- Estamos juntos pela mesma causa, diz a menina.

A menina explica a situação para a funcionária que estava a atender na clínica. Que fossem até lá, que socorressem a gaivota caída na rua. Mas ela nota que algo de mal se passa. O senhor esta nervoso. A funcionária diz,
- Não há cá nenhum veterinário.
- Como não? diz a menina, estamos numa clínica, numa Associação Protetora dos Animais, pois não? Faça alguma coisa, a gaivota está lá na rua a morrer.
A funcionária responde,
- Estou só, não posso lá ir. Não há cá veterinários e daqui não posso sair, chamem os bombeiros. O senhor se irrita. O grupo grita.
- Faça alguma coisa ela está a morrer, diz a menina.
- E não a tragam para cá, é a resposta da mulher.
O grupo se exalta, xingam a funcionária. O senhor exige o livro de reclamações.
- Quero seu nome, diga lá seu nome.
- Não há livro de reclamações, nem direi meu nome.
O senhor se irrita ainda mais, o grupo se exalta, a gritaria aumenta.

Imediatamente a menina sai da clínica e corre para o local onde estava a gaivota. Parte do grupo a acompanha, todos correm pelas ruas. Chegam ao local.
- Vamos leva-la para lá, já!
A menina olha em volta, descobre uma caixa de cartão vazia.
- Cuidado, a asa parece partida.
Com a gaivota na caixa correm e voltam todos para a clínica. No trajeto enquanto correm a levar a gaivota, a menina saca do telemóvel, liga para os bombeiros, fala com eles, explica a situação. Eles dizem que,
- Não podemos ir busca-la, tragam-na para cá.
- Não podemos, somos jovens, não temos carros.

Chegam de volta à clínica, o tumulto havia aumentado. O grupo de jovens, o senhor e a funcionária discutem. A menina coloca a caixa com a gaivota na frente da funcionária
- Já cá estamos. A gaivota está aqui, pelo amor de deus cuidem dela.
- Saiam todos que vou fechar a clínica, está na hora do meu almoço.
A confusão aumenta ainda mais, os xingamentos pioram,
- Peixeira.
No meio da confusão um amigo gay da menina em bico de pés grita seu mais pesado calão:
- Ordinária. Sua ordinária!
Os colegas riem da ferocidade do garoto. A funcionária já está histérica, gritando com todos. Neste momento o senhor passa-se dos carretes, grita com ela,
- És mesmo uma varina, não passas de uma varina. Vai-te à Madragoa.
Um dos rapazes se exalta,
- A gaivota está a deitar sangue, não me ponhas panos mansos. Não fazem um corno!
Outro passa dos limites,
- Cabrona, granda cabrona é mesmo o que és.
Ainda a falar ao telemóvel a menina pede aos bombeiros,
- Nos ajudem, por favor.
- Não podemos, vocês têm de levá-la para tratar à Monsanto.
- Não temos como lá ir. Passem-me para a Guarda Nacional!

Transferências de ligações são feitas entre departamentos. A menina sempre, sempre, sempre, sempre repetindo as mesmas explicações. A ansiedade aumenta. Finalmente a ligação é transferida para a Guarda Nacional Republicana, equivalente à Policia Federal brasileira. O tempo passava, a menina suava, a gaivota sangrava. Já muito ansiosa ela mais uma vez explica a situação, agora para a GNR,
- Por favor venham já.
- Mas você terá de se responsabilizar, precisamos de seu nome, seus detalhes.
- Não me importa, mas venham logo, ela está a morrer.
- Estamos a caminho.
A menina relaxa um pouco, afinal acima da GNR só mesmo apelando para as Forças Armadas.

Atraída pelo tumulto chega a polícia. Um policia da PSP, a policia de segurança pública, entra na clínica. O tumulto diminui um pouco. O policia entra, olha tudo ao redor, se aproxima da caixa onde está a gaivota. Abaixa-se até ela e tenta fazer uma festinha na cabecinha da ave. Ao tocá-la ele se assusta e se afasta. Todos correm para ele, lhe cercam e exigem que faça alguma coisa. Atordoado com tamanho tumulto ele diz alto a todos.
- Não posso fazer nada, não é meu departamento. E além de tudo ainda não estou a serviço, estou a caminho da esquadra.
E vai-se embora.

A indignação aumenta. A funcionária aproveita a confusão em torno do policia e enquanto o grupo estava distraído ela entra em uma outra sala. A menina nota o movimento e a segue. Quando a porta da outra sala se abre, a menina vê lá dentro uma outra mulher.
- Ó pá, mas quem é a senhora?
- Sou a doutora veterinária.
A menina não acredita.
- A senhora se esconde! Que absurdo. A senhora precisa atender a gaivota já, ela está a morrer.
- Não percebo nada de pássaros exóticos.
- Exóticos? Como exóticos? Lisboa está cheia delas.
- Não posso fazer nada, não sei o que fazer.
- Mas afinal cá não estamos numa Sociedade Protetora dos Animais?
- Isto aqui é uma clínica particular. Este nome, que tem mais de cem anos, é apenas uma tradição antiga. Sabias que é muito difícil mudar o nome de um estabelecimento comercial? Mas cobramos preços mais baratos.

A menina vai direto ao ponto.
- Não importa, faça alguma coisa, a senhora precisa atender a gaivota, ela está a morrer.
- Não sou obrigada a atende-la.
A menina se revolta, aumenta o tom de voz,
- Cá temos um absurdo, pois não? A senhora não respeita a vida? É inacreditável, a senhora não fez sequer um juramento ao se formar?
- Não fiz juramento algum.
- Como não? Minha mãe é dentista e fez. Coloque-a ao menos ao soro, pelo amor de deus.
- Saiam vocês todos daqui senão ligo para a esquadra, vou chamar a polícia.
- Não se preocupe minha boa senhora que cá já chamei a Guarda Nacional.

Intimidada a veterinária vai para o salão de entrada. O grupo se surpreende com a chegada dela.
- Quem é esta? Perguntam-se todos.
- É a veterinária!
Gritos, balbúrdia.
- Escondias-tes ó minha granda estúpida?
A veterinária se aproxima da caixa onde estava a gaivota, olha para ela e resolve levá-la para sua sala.
Se dirige para a gaivota, mas ao tomar a caixa nas mãos deixa-a cair ao chão. Silêncio mortal, todos olham pasmos. A caixa cai, a gaivota rola ao assoalho. A ave caída começa a sangrar pelo bico. Hemorragia interna. O grupo enlouquece. Gritam, avançam para a veterinária. Querem esganá-la. Entre xingamentos pesados, entre imensas palavras de calão se ouvem os gritos daquele garoto:
- Assassina! Ordinária. Sua ordinária. Não vales um cú!
A menina mais preocupada com a gaivota do que em agredir a veterinária tenta acalmar os colegas,
- Calma, calma, nosso problema não é a doutora. É a gaivota. Deixem-na fazer alguma coisa.
- Depois matamos esta assassina, responde o grupo.

A menina toma a gaivota e a leva cuidadosamente para a sala de atendimento seguindo a veterinária. Com a gaivota nas mãos ela sente entre seus dedos o coraçãozinho da ave já aos pulos. A veterinária deita a ave numa mesa e coloca-lhe um tubo de soro no bico. O sangue já se escorre pelos cantos.
- Por que então não lhe dás um calmante? Ela já tem o coração aos pulos, deve de estar muito nervosa.
- Já lhe disse que não percebo nada de aves exóticas.
- Exótica é a senhora que nunca olhou para os céus de Lisboa.

Ouvem-se batidas fortes na porta da clínica. O grupo silencia, correm para as janelas. A GNR chegara.
A menina corre para atender. Ela mesma abre a porta.
- Quem é a senhora Vahine? Pergunta um oficial.
- Sou eu mesma.
- Viemos buscar a gaivota. Vamos leva-la para o Centro de Recuperação de Animais Silvestres em Monsanto.
- Ótimo aviem-se, despachem-se por favor!
Os homens da GNR colocam a gaivota numa caixa transportadora e saem com a ave. O oficial diz à menina,
- Tenho pena, mas pelo estado da gaivota talvez ela não tenha sobrevida. Mas ela lá ficará e depois poderemos acompanhar o tratamento.
E saem rapidamente. A clínica aos poucos se acalma, se esvazia, as pessoas se dispersam. O senhor se aproxima da menina.
- Trabalho na Câmara de Lisboa, vou processar esta veterinária, vou mover-lhe um processo para lhe cassar a licença. A menina ouve calada, o pensamento distante, quase chorando. O que será da gaivota? O homem continua:
- Olhe minha menina, o que acabamos de ver é o espelho deste país, de nossos políticos, de nossos governantes. Um descaso total, uma irresponsabilidade total. Uma calamidade.

Triste, tensa, sentindo uma solidão amarga, a segurar o choro, a menina se afasta lentamente da clínica, deixando aos poucos para trás o lugar daquele pesadelo. Caminha para o Cais do Sodré para tomar o comboio para o Estoril, para voltar a casa. No caminho ela passa pelo local da avenida onde começara aquele dia. A pequena mancha de sangue já está escura, outros carros passam por cima. Umas penas brancas e pequeninas estão grudadas ao chão.
A menina entra na estação, procura a plataforma de embarque. Parada na plataforma, o olhar se perde nos trilhos do comboio que esta para chegar. Enquanto espera ela sente raiva. Uma tristeza salgada a tingir a alma, o céu a escurecer, a saudade de alguma coisa a acalmar o peito. Fado.
O comboio chega, ela entra, senta numa cadeira ao lado de uma janela para estar ao mar no trajecto. O comboio arranca, barulho de rodas nos trilhos, paisagem a passar, mar ao lado, horizonte ao longe. No céu não há mais gaivotas, só umas poucas velas de barcos.
Ela encosta o nariz no vidro da janela, o vidro embaça com sua respiração ainda tensa, ela esconde o rosto e soluça baixinho. De pena, de raiva. Muita raiva. Como estará a gaivota?

O comboio chega ao Estoril, a menina salta, caminha para casa, a alma vazia, os passos a lhe levar, o choro seco. Entra em casa, vai direto ao quarto. Uma noite imensa lhe espera. Imagens, tumulto, sangue de vida tão fugaz, tudo a lhe preencher as horas lentas até um novo dia. Sono entrecortado aos pesadelos. Um novo dia mudará tudo? E se meu pai que esta lá do outro lado deste oceano estivesse cá, teria sido diferente?  Não sei, mas pelo menos eu teria seu colo para voltar.
O dia clareia, leva a insônia. Chega vazio, indiferente, já cansado.

A menina decide procurar uma antiga professora de Integração Social. Uma ativista, especialista em direitos dos animais. Telefona-lhe, marcam e se encontram. Conta-lhe tudo, cada detalhe, cada absurdo, cada dor. Esvazia a revolta, divide a indignação. A professora ouve emocionada, calada. Compartilha a mesma dor, a mesma indignação. Mas no fundo sorri consolada. Ao fim da história, com um brilho nos olhos ela olha para a menina. Com esperança, com um carinho imenso lhe diz,
- Esta juventude ainda não esta perdida.
E se abraçam.