Sir William Lions fundador da Jaguar criou um ícone do design moderno, o modelo XK-E. O carro foi o sonho de uma geração e deixou a seguinte órfã quando parou de ser fabricado. Uma frustração enorme para minha geração que não teve idade para tê-lo, apenas para admirá-lo e quando chegou nossa hora ele já não era mais fabricado. Por causa do XK-E vivemos na eterna ansiedade de que um dia a Jaguar voltasse a fazer carros esporte.
Mas eis que a Jaguar toma a decisão de voltar ao mercado esportivo. Chamam o Ian Callum apontam o XK-E e dizem:
-Do it again.
Para Callum, o mais brilhante car designer inglês, a “ordem” era tudo que qualquer um gostaria de ouvir. Por dois anos acompanhei pela imprensa o renascimento da fera: os primeiros esboços, os desenhos, os protótipos, as fotos, os testes, o desenvolvimento. Eu morava e trabalhava na Alemanha, a terra das Autobahnen, perfeitas, sem limite de velocidade, o país ideal para se ter um carro deste. Eu sonhava com a fera solta nestas estradas, até que um dia leio em uma revista que o Jag estava pronto.
Oh Glorious Day! O XK-E renascia como XK-8, o sonho agora era possível.
Passei na sala do Horst, diretor financeiro da empresa, coloquei a revista aberta em cima da mesa dele:
- Este é meu presente de Natal. Compre-o.
Dias depois Horst entra na minha sala,
- Posso comprar o Jaguar, mas a fila é de dois anos.
- Você não entendeu, eu quero o meu no Natal.
Horst, sabe-se lá como, conseguiu furar a fila mas não me disse nada. Um dia ele entra na minha sala carregando um catálogo, para em minha frente com um ar vitorioso e joga o catálogo na minha mesa.
- Especifique as opções. Ele chegará antes do Natal.
Olhei para ele, olhei para o catálogo. Era o Jaguar. Nem sequer lhe agradeci.
- Saia daqui agora. Eu não estou nem para minha mulher.
Éramos amigos, ele deu uma gargalhada e saiu.
Que delícia folhear aquele catálogo, eu ia poder tê-lo. Melhor ainda ia poder usá-lo. Usá-lo sem limites nas Autobahnen. Escolhi, especifiquei cada detalhe como se um amante pudesse construir a amada. Viajei duas vezes à Inglaterra apenas para escolher a cor. Decidi pela Acquamarine, um azul que muda ligeiramente pra verde dependendo da incidência da luz.
O Jaguar tem várias delícias, além da beleza, da nobreza e da potencia. Uma delas é o perfume interno, the Jaguar scent. O perfume característico é uma mistura do aroma da lã virgem de carneiro dos tapetes, do mogno envernizado, muitas e muitas vezes até ficar espelhado, no painel, laterais e detalhes, e do couro Connolly em todo o interior. Este couro vem de vacas selecionadas, tratadas por veterinários com dietas especiais, que vivem numa fazenda sem cercas para que não machuquem a pele. Todas as arvores da fazenda são descascadas e o tronco nu é lixado para que os animais não se arranhem. São vacas privilegiadas que um dia darão suas vidas pela Inglaterra. O couro é exclusivo dos sofás da rainha.
Callum fez um trabalho magnífico no XK-8 recriando o XK-E em formas atualizadas. O carro foi eleito pelos arrogantes italianos, La più bella machina convertibile di secolo. Módena se rendia a Coventry os tiffosi ficaram mais vermelhos que seus carros. Em deferência ao Commendatore configurei os instrumentos da mia bella em italiano. Mas nem tudo foi fácil. Foi quase um calvário. Houve um pequeno atraso na linha de produção por conta do desenho dos bancos, que precisou ser alterado. Tremi. Será que o Jag não chegaria para o Natal?
- Horst por favor cheque o prazo de entrega. Pedi quase chorando.
Estava tudo bem o atraso era de duas semanas mas a entrega seria feita a tempo. Relaxei, sem imaginar que uma tempestade se aproximava.
Eis que numa manhã Horst entra na minha sala.
- Temos um pequeno problema com seu XK-8.
- Não será entregue no Natal?? Disse quase enfurecido.
- Calma, será sim. O problema está nas especificações que a Jaguar Deutschland passou para os ingleses.
- O que houve?
- Eles erraram um detalhe.
- Aonde eles erraram?
- Na cor, o carro será preto.
- Preto? Como preto? Você sabe perfeitamente que fui duas vezes à Inglaterra apenas para escolher a cor. Preto jamais! Será Acquamarine.
- Mas o Jag já está pronto para ser enviado para cá...
- Ligue agora para a Jaguar Deutschland. Incompetentes, é por isso que vocês perderam a guerra!
Horst ligou para a Jaguar Alemã. Ele tentava, mas não conseguia convencer os alemães a corrigir o erro. Eu ouvia a conversa em alemão e mesmo sem entendê-la sentia que o problema não se resolvia.
- Me dê este telefone.
Tomei o telefone e falei diretamente com o diretor alemão. Mas não havia como convencê-lo, ele insistia dizendo que o carro estava pronto e se eu quisesse outro teria que esperar meses.
- Mas foram vocês que cometeram o erro!
- Assumimos o erro, mas não há como mudar a produção da fabrica e o senhor sabe que já foi privilegiado no prazo de entrega.
Não havia jeito, o Kraut estava irredutível. Irado desliguei o telefone.
- Horst ligue já para Coventry, ligue para o presidente da Jaguar!
Horst se espantou, tremeu, mas ligou. Ligou para o diretor de produção da fabrica.
- Eu falo. Me dê esse telefone.
Expliquei calmamente o problema ao diretor, contei-lhe dos sonhos da minha geração, do excelente trabalho do Ian Callum, das minhas idas à Inglaterra apenas para escolher a cor. Falei do erro inaceitável dos alemães. Joguei com os sentimentos dos ingleses pelos pérfidos Germans.
Mr. Smith (acho que era esse o nome dele) concordava, mas argumentava dizendo que o XK-8 ficava lindo em preto, que eu iria adorar. Que era impossível alterar o planejamento da produção, que a fabrica estava abarrotada de pedidos para os próximos dois anos. Que por favor, eu fosse compreensivo com os erros dos bárbaros alemães.
Disse inclusive que entendia meu sofrimento de morar numa terra hostil e xenófoba como a Alemanha. Compreendia principalmente por que ele já havia morado em São Paulo e conhecia a hospitalidade e a alegria dos brasileiros. Ele também estava entrando no jogo das nacionalidades.
Quando senti que a batalha estava quase perdida me lembrei da gentileza e do caráter inglês.
- Mr. Smith eu ainda não lhe expliquei porque escolhi essa cor, a Acquamarine. Ainda não lhe disse o motivo de minha escolha.
- Yes, Mr. Correa?
- Mr. Smith eu escolhi esta cor por que é essa a cor dos olhos da minha mulher. São azuis e também mudam de azul para verde a depender da luz. Fez-se um brevíssimo silencio.
- Oohh... Oh my God, Mr. Corrêa. Que belíssimos olhos tem sua mulher! Nos perdoe pelo erro dos alemães. É mais fácil alterar nossa linha de produção que mudar olhos tão magníficos. Por favor, receba o Preto com os cumprimentos da Jaguar e fique com ele enquanto fabricamos um Acquamarine. Para nós é um privilégio ter a cor de tão lindos olhos em nossos carros.
- Obrigado. Para mim não é menor o privilégio de tratar com um gentleman.
Desliguei o telefone. Lancei um olhar vitorioso para o Horst e disse quase com raiva:
- Horst providencie para que esse carro em nenhuma hipótese passe pelas mãos da Jaguar Deutschland. Mande o container com o carro direto de Coventry para mim. Não quero nenhuma bunda alemã sentando em meu Jaguar.
Horst fumegou de tão vermelho. Tenho certeza de que se ele pudesse me mandaria para um Konzentrationslager. Se controlando ele balbuciou:
- Herr Corrêa lembre-se de que pelo menos uma, pelo menos uma bunda inglesa já terá sentado em seu carro na pista de testes de Coventry.
- É verdade. Mas pelo menos será a de um súdito da Rainha e não a de quem já jogou bombas sobre a cabeça dela.
Ainda bem que Horst não tinha uma Lugger.
Recebi o Jaguar preto antes do Natal e esperei mais dois meses pelo Acquamarine.
Quando a machina finalmente chegou, junto com ela veio um simpático representante da fábrica para fazer a entrega oficial do XK-8 definitivo. A Jaguar tem o cuidado de que todo carro seja entregue pessoalmente ao dono por um funcionário. É ele quem lhe entrega as chaves, os manuais, as agendas, o chaveiro de prata, o alfinete de gravata, o cartão do clube de proprietários Jaguar, o pin para o paletó e outros mimos.
Depois de me entregar tudo ele gentilmente se propôs a ir me mostrar o funcionamento do carro. Eu ri, olhei-o diretamente nos olhos e perguntei,
- O Sr. é casado?
- Sim, respondeu ele intrigado com a pergunta.
- O Sr. por acaso levou mais alguém para sua lua-de-mel?
Mas eis que a Jaguar toma a decisão de voltar ao mercado esportivo. Chamam o Ian Callum apontam o XK-E e dizem:
-Do it again.
Para Callum, o mais brilhante car designer inglês, a “ordem” era tudo que qualquer um gostaria de ouvir. Por dois anos acompanhei pela imprensa o renascimento da fera: os primeiros esboços, os desenhos, os protótipos, as fotos, os testes, o desenvolvimento. Eu morava e trabalhava na Alemanha, a terra das Autobahnen, perfeitas, sem limite de velocidade, o país ideal para se ter um carro deste. Eu sonhava com a fera solta nestas estradas, até que um dia leio em uma revista que o Jag estava pronto.
Oh Glorious Day! O XK-E renascia como XK-8, o sonho agora era possível.
Passei na sala do Horst, diretor financeiro da empresa, coloquei a revista aberta em cima da mesa dele:
- Este é meu presente de Natal. Compre-o.
Dias depois Horst entra na minha sala,
- Posso comprar o Jaguar, mas a fila é de dois anos.
- Você não entendeu, eu quero o meu no Natal.
Horst, sabe-se lá como, conseguiu furar a fila mas não me disse nada. Um dia ele entra na minha sala carregando um catálogo, para em minha frente com um ar vitorioso e joga o catálogo na minha mesa.
- Especifique as opções. Ele chegará antes do Natal.
Olhei para ele, olhei para o catálogo. Era o Jaguar. Nem sequer lhe agradeci.
- Saia daqui agora. Eu não estou nem para minha mulher.
Éramos amigos, ele deu uma gargalhada e saiu.
Que delícia folhear aquele catálogo, eu ia poder tê-lo. Melhor ainda ia poder usá-lo. Usá-lo sem limites nas Autobahnen. Escolhi, especifiquei cada detalhe como se um amante pudesse construir a amada. Viajei duas vezes à Inglaterra apenas para escolher a cor. Decidi pela Acquamarine, um azul que muda ligeiramente pra verde dependendo da incidência da luz.
O Jaguar tem várias delícias, além da beleza, da nobreza e da potencia. Uma delas é o perfume interno, the Jaguar scent. O perfume característico é uma mistura do aroma da lã virgem de carneiro dos tapetes, do mogno envernizado, muitas e muitas vezes até ficar espelhado, no painel, laterais e detalhes, e do couro Connolly em todo o interior. Este couro vem de vacas selecionadas, tratadas por veterinários com dietas especiais, que vivem numa fazenda sem cercas para que não machuquem a pele. Todas as arvores da fazenda são descascadas e o tronco nu é lixado para que os animais não se arranhem. São vacas privilegiadas que um dia darão suas vidas pela Inglaterra. O couro é exclusivo dos sofás da rainha.
Callum fez um trabalho magnífico no XK-8 recriando o XK-E em formas atualizadas. O carro foi eleito pelos arrogantes italianos, La più bella machina convertibile di secolo. Módena se rendia a Coventry os tiffosi ficaram mais vermelhos que seus carros. Em deferência ao Commendatore configurei os instrumentos da mia bella em italiano. Mas nem tudo foi fácil. Foi quase um calvário. Houve um pequeno atraso na linha de produção por conta do desenho dos bancos, que precisou ser alterado. Tremi. Será que o Jag não chegaria para o Natal?
- Horst por favor cheque o prazo de entrega. Pedi quase chorando.
Estava tudo bem o atraso era de duas semanas mas a entrega seria feita a tempo. Relaxei, sem imaginar que uma tempestade se aproximava.
Eis que numa manhã Horst entra na minha sala.
- Temos um pequeno problema com seu XK-8.
- Não será entregue no Natal?? Disse quase enfurecido.
- Calma, será sim. O problema está nas especificações que a Jaguar Deutschland passou para os ingleses.
- O que houve?
- Eles erraram um detalhe.
- Aonde eles erraram?
- Na cor, o carro será preto.
- Preto? Como preto? Você sabe perfeitamente que fui duas vezes à Inglaterra apenas para escolher a cor. Preto jamais! Será Acquamarine.
- Mas o Jag já está pronto para ser enviado para cá...
- Ligue agora para a Jaguar Deutschland. Incompetentes, é por isso que vocês perderam a guerra!
Horst ligou para a Jaguar Alemã. Ele tentava, mas não conseguia convencer os alemães a corrigir o erro. Eu ouvia a conversa em alemão e mesmo sem entendê-la sentia que o problema não se resolvia.
- Me dê este telefone.
Tomei o telefone e falei diretamente com o diretor alemão. Mas não havia como convencê-lo, ele insistia dizendo que o carro estava pronto e se eu quisesse outro teria que esperar meses.
- Mas foram vocês que cometeram o erro!
- Assumimos o erro, mas não há como mudar a produção da fabrica e o senhor sabe que já foi privilegiado no prazo de entrega.
Não havia jeito, o Kraut estava irredutível. Irado desliguei o telefone.
- Horst ligue já para Coventry, ligue para o presidente da Jaguar!
Horst se espantou, tremeu, mas ligou. Ligou para o diretor de produção da fabrica.
- Eu falo. Me dê esse telefone.
Expliquei calmamente o problema ao diretor, contei-lhe dos sonhos da minha geração, do excelente trabalho do Ian Callum, das minhas idas à Inglaterra apenas para escolher a cor. Falei do erro inaceitável dos alemães. Joguei com os sentimentos dos ingleses pelos pérfidos Germans.
Mr. Smith (acho que era esse o nome dele) concordava, mas argumentava dizendo que o XK-8 ficava lindo em preto, que eu iria adorar. Que era impossível alterar o planejamento da produção, que a fabrica estava abarrotada de pedidos para os próximos dois anos. Que por favor, eu fosse compreensivo com os erros dos bárbaros alemães.
Disse inclusive que entendia meu sofrimento de morar numa terra hostil e xenófoba como a Alemanha. Compreendia principalmente por que ele já havia morado em São Paulo e conhecia a hospitalidade e a alegria dos brasileiros. Ele também estava entrando no jogo das nacionalidades.
Quando senti que a batalha estava quase perdida me lembrei da gentileza e do caráter inglês.
- Mr. Smith eu ainda não lhe expliquei porque escolhi essa cor, a Acquamarine. Ainda não lhe disse o motivo de minha escolha.
- Yes, Mr. Correa?
- Mr. Smith eu escolhi esta cor por que é essa a cor dos olhos da minha mulher. São azuis e também mudam de azul para verde a depender da luz. Fez-se um brevíssimo silencio.
- Oohh... Oh my God, Mr. Corrêa. Que belíssimos olhos tem sua mulher! Nos perdoe pelo erro dos alemães. É mais fácil alterar nossa linha de produção que mudar olhos tão magníficos. Por favor, receba o Preto com os cumprimentos da Jaguar e fique com ele enquanto fabricamos um Acquamarine. Para nós é um privilégio ter a cor de tão lindos olhos em nossos carros.
- Obrigado. Para mim não é menor o privilégio de tratar com um gentleman.
Desliguei o telefone. Lancei um olhar vitorioso para o Horst e disse quase com raiva:
- Horst providencie para que esse carro em nenhuma hipótese passe pelas mãos da Jaguar Deutschland. Mande o container com o carro direto de Coventry para mim. Não quero nenhuma bunda alemã sentando em meu Jaguar.
Horst fumegou de tão vermelho. Tenho certeza de que se ele pudesse me mandaria para um Konzentrationslager. Se controlando ele balbuciou:
- Herr Corrêa lembre-se de que pelo menos uma, pelo menos uma bunda inglesa já terá sentado em seu carro na pista de testes de Coventry.
- É verdade. Mas pelo menos será a de um súdito da Rainha e não a de quem já jogou bombas sobre a cabeça dela.
Ainda bem que Horst não tinha uma Lugger.
Recebi o Jaguar preto antes do Natal e esperei mais dois meses pelo Acquamarine.
Quando a machina finalmente chegou, junto com ela veio um simpático representante da fábrica para fazer a entrega oficial do XK-8 definitivo. A Jaguar tem o cuidado de que todo carro seja entregue pessoalmente ao dono por um funcionário. É ele quem lhe entrega as chaves, os manuais, as agendas, o chaveiro de prata, o alfinete de gravata, o cartão do clube de proprietários Jaguar, o pin para o paletó e outros mimos.
Depois de me entregar tudo ele gentilmente se propôs a ir me mostrar o funcionamento do carro. Eu ri, olhei-o diretamente nos olhos e perguntei,
- O Sr. é casado?
- Sim, respondeu ele intrigado com a pergunta.
- O Sr. por acaso levou mais alguém para sua lua-de-mel?