Maio de 68. Uma Explosão de Juventude.

Flávio Suplicy de Lacerda era o ministro da Educação em 1964. Cinco meses depois do golpe o governo decretou a lei a Lei 4.464 que regulava os órgãos de representação estudantil. A Lei Suplicy gerava imensos protestos, duramente reprimidos pela ditadura.

Estudando no Colégio São José, o Maristas na Tijuca, mas morando em Ipanema, eu tinha uma longa jornada diária. Solução: me transferir para o D. Pedro II, o melhor colégio público da época no Rio. Problema: o Pedro II não aceita transferências, só se entra por concurso e no começo do primeiro grau. Solução: o ministro Suplicy, amigo da família, determinou que a transferência fosse feita, perguntou para qual das unidades. Preferimos a de Humaitá no Botafogo, a mais próxima de Ipanema.

No Pedro II eu fazia teatro amador, dava aulas de história da Arte, escrevia no jornal do colégio. No diretório era o mais muito ativo contra a Lei Suplicy. Fazia discursos inflamados na frente da escola.
Vilaça, o implacável diretor do colégio observava de longe e ria. Era o único que sabia que aquele garoto de 14 anos só era aluno do colégio por uma deferência justamente do ministro contra o qual protestava. Numa dessas manifestações em frente ao Pedro II a Policia Militar chegou, dispersou-a, prendeu-me, o líder. Dentro do camburão um oficial jovem me perguntou,
- Quantos anos você tem?
- Por que? Qual o problema?
- Responda logo.
- Quatorze.
- Onde você mora?
- Ipanema.
- Você não deveria estar namorando, pegando umas ondas na praia?
- Tenho minhas convicções.
- Convicções? OK, menino.

Fiquei indignado com a falta de respeito. Menino?
Ele foi para a frente da camionete, me deixou sozinho lá atrás. O camburão rodou pelo Rio por um tempo enorme. Parou, o oficial voltou, abriu a porta, me mandou saltar. Estávamos no meio de uma rua completamente desconhecida.
- Saia.
Perguntou se eu tinha dinheiro, mostrei a carteira, tirou todo o dinheiro que havia.
- Agora vá a pé para casa.
- O senhor não vai me prender?
- Não tenho tempo pra garotos da sua idade. Volte a pé para testar suas convicções.
Estava num subúrbio distante. Caminhei horas à fio, cheguei em casa com bolhas nos pés. No dia seguinte quando cheguei no Pedro II todos sabiam, todos haviam visto a prisão. Era o herói do dia. Os meninos com inveja, as meninas perguntavam excitadas como tinha sido.
- Foi duro, foi difícil.

A ditadura se instalou solidamente. O movimento estudantil cresceu, a repressão aumentou barbaramente. Em 66 o movimento estudantil estava no auge dos protestos contra a Lei Suplicy e o acordo MEC-USAID, entre o Ministério e a agência americana, assinado em Junho. Entre o Ministério da Educação e Cultura do Brasil e a United States Agency for International Development. A CIA entrara no MEC. 
Em Setembro já havia a suspensão das aulas na Faculdade Nacional de Direito no Rio. Havia 178 estudantes presos durante o congresso da UNE em São Bernardo do Campo. Protestos pipocavam por todo o Brasil.

Quinta-feira, 22 de Setembro de 1966. Dia Nacional de Protesto contra a Ditadura.
Depois das manifestações cerca de 600 estudantes ocuparam a Faculdade Nacional de Medicina na Praia Vermelha. Ocupamos e nos fechamos lá dentro. A Policia Militar cercou o prédio. Apesar da censura chegaram jornais e televisão. Durante o dia pais de alunos, políticos e professores formaram uma comissão para negociar a saída dos estudantes.
Enquanto tudo acontecia organizamos a resistência para a mais que provável invasão pela policia. Pedaços de madeira das portas, tijolos e pedras de muros e paredes, produtos químicos dos laboratórios. Situação extremamente tensa. No começo da madrugada chegaram os tanques do Exército. Às três da manhã os militares invadiram a Faculdade de Medicina.

Foi um massacre. O Massacre da Praia Vermelha.
Os militares quebravam tudo, batiam com violência em moças e rapazes. Além dos universitários havia muitos secundaristas, muitos garotos e garotas de 16 anos como eu. Os militares formaram um corredor em direção ao portão de saída. Os estudantes eram espancados em direção ao corredor polonês. Lá o massacre se completava. Caíamos no chão ensanguentados debaixo de cassetetes, chutes e mais chutes até sermos jogados na rua.
Depois de passar pelo corredor polonês eu tentava convencer os outros a voltarem e lutar. Voltei, passei por tudo novamente. Temeroso por minha família não voltei para casa. Fiquei escondido por dois dias na casa de um amigo no Leblon que avisou minha mãe.

Quando voltei para casa fiquei uma semana de cama, machucado, ferido.
Uma tia foi me visitar. Ela, o filho e a filha. Quando ela me viu naquele estado olhou para o filho, militante de um partido de esquerda, que também estivera lá no cerco da Praia Vermelha. Ele fugira antes da invasão, o cara não tinha sequer um arranhão. Ela olhou para ele,
- Esta luta não é para covardes.
Ela tinha razão. Anos depois quando ele foi preso, em consequência de suas delações, quatro pessoas morreram. 

Quando passei pela segunda vez naquele corredor polonês fui atirado de novo na rua. Uma menina me viu sangrando, a cabeça partida. Levantou a saia, umas pernas lindas, rasgou a anágua, pôs um pedaço na minha cabeça. Fomos para uma clinica, enquanto me costuravam ela esperava. Saímos, ela me deu um beijo interminável, quente, salgado. Nunca mais a vi.

Quinta-feira, 28 de Março de 68. À Queima Roupa.
A situação estava cada vez mais violenta desde que a policia tinha invadido o Calabouço, um restaurante universitário, matado à queima roupa o estudante Edson Luis e Benedito Frazão que morreu no hospital. O enterro parou o Rio. Os cinemas da Cinelândia anunciavam os filmes A Noite dos Generais, À Queima Roupa e Coração de Luto.

Sexta-feira, 21 de Junho de 1968. A Sexta-feira Sangrenta.
As manifestações que começaram em frente à Embaixada Americana terminaram com vinte e oito mortos, centenas de feridos, mais de mil presos, quinze viaturas incendiadas.
Estávamos na Av. Rio Branco indo em direção à Cinelândia.
Éramos milhares quando chegamos no cruzamento com a Av. Almirante Barroso. Vimos os pelotões da polícia chegando, na altura do Teatro Municipal. Vi os militares na linha de frente se ajoelharem em posição de tiro engatilhando os fuzis. A multidão se dispersou, choviam bombas de gás lacrimogênio, devolvíamos as bombas, a cavalaria avançou, jogamos bolinhas de gude, os cavalos começaram a cair. Os militares a pé corriam, atiçavam seus cães contra nós, avançavam, atiravam. As pessoas corriam deles, fiz o inverso corri em direção a eles. Encostei-me numa lateral do Teatro Municipal. Eles passaram.

Fomos atrás deles. Por trás deles.
Numa esquina da Av. Rio Branco, próximo ao Jornal do Brasil, ficamos estudantes de um lado, militares do outro, tentando avançar, contornar a tal esquina. Eles se aproximavam, davam tiros, jogavam bombas de gás, nós apanhávamos as bombas, atirávamos de volta. Quem ultrapassava demais a esquina, policial ou estudante, era pego pelo outro lado. Eis que um militar avança demais. Agarramos, derrubamos, o capacete dele caiu, o capacete rolou, começamos a jogar bola com ele.
Uma farra no meio do caos.

Quarta-feira, 26 de Junho de 1968. A Passeata dos 100 mil.
A passeata dos 100 mil foi o clímax e o anti-clímax das manifestações do 68 no Brasil. Depois dela não houve mais nada do mesmo porte.
Às 10hs da manhã a Cinelândia estava repleta. A passeata que começou com 50 terminou com 100 mil pessoas. Até então a maior manifestação da história do país. Não houve conflito apesar do enorme aparato policial. Na frente desfilavam artistas e intelectuais. Com eles uma das mais belas mulheres que já tinha visto. Ela tinha acabado de chegar de Paris, do Maio de 68 que paralisara a França. Desfilava magnífica incendiando meus dezoito anos.

Depois da passeata fui com um grupo para o Leblon. Ia haver uma festa de comemoração num apartamento muito conhecido. Havia muita gente, uma alegria imensa, uma euforia maravilhosa. Ela estava lá, sentada num sofá, linda, deslumbrante. Fui apresentado por um ator amigo meu. Ela notou meu deslumbramento, perguntou,
- Você estava lá na passeata?
- Claro. Não tirei os olhos de você.
Ela se levanta, pega na minha mão, me leva pelo corredor do apartamento,
- Vem cá menino bonito.