Todos os dias voltávamos de Lisboa para Sintra.
Eric meu filho, Vahine minha filha, Sandra minha mulher e eu. Invariavelmente tomávamos o mesmo
comboio (trem) no mesmo horário. Preferíamos não usar o Mini por conta dos
longos engarrafamentos na A9, a CREL - circular regional exterior de Lisboa.
De tanto viajar no mesmo comboio com o tempo se conhece algumas pessoas que frequentam o mesmo horário. Normal.
De tanto viajar no mesmo comboio com o tempo se conhece algumas pessoas que frequentam o mesmo horário. Normal.
Havia uma figura, um pedinte. Um homem alto, magro,
relativamente bem vestido, de aparência saudável. Saudável mesmo.
Ele sempre estava lá, uma presença tão certa quanto a do
pica (fiscal que pica os bilhetes). Ele passava de uma carruagem (vagão) para
outra abria a porta e recitava sempre a mesma cantilena. A voz baixa. O rosto triste. Muito triste,
- Tenho fommm... (fome).
As pessoas já acostumadas nem lhe davam atenção. Ele
continuava, quase choroso,
- Tenho as diabetes, tenho ossos fracos, cá tenho a tensão alta, não tenho o baço, já tirei partes dos
intestinos, um rim não funciona, tive ataques do coração, sou hemofílico, tenho
cancro (câncer) no estômago e na pelll (pele), só um pulmão está a funcionar.
Dava vontade de rir. O homem era uma enciclopédia ambulante de
doenças graves. Gravíssimas. Ele continuava,
- Não posso trabalhar. Minha mulher me abandonou. Lá em casa, a esperar pelo pão, tenho
putos e raparigas (meninos e meninas).
Aí é que dava mesmo vontade de rir, mas nos controlávamos.
Até que um dia ele acrescentou mais uma doença,
- Tenho Sida (Aids).
Aí o Eric não aguentou e disse em bom brasileiro (português
falado no Brasil),
- Putaqueôpariu! E ainda estás vivo?
A portuguesada sempre muito formal começou a rir
disfarçadamente. Até o pica riu,
- Esses brasilairos...