A Gracia do Capibaribe.

Carioca criado em Ipanema, na Nascimento Silva.
Ali mesmo, um cantinho, um violão, este amor uma canção, pra fazer feliz a quem se ama. Praia em frente à Montenegro, passando sempre na frente do Veloso. Surfando no Arpoador.

Mas nas férias uma imposição familiar. Ficar em Recife.
Uma tragédia, nada pra fazer numa cidade provinciana. Sem hipótese de comparação com Ipanema. Mas eu ia. Fazer o quê? Ia como iria ao cadafalso.
Mas havia compensações. Lá podia aos 12 anos dirigir o jeep de meu avô, dirigir o fusca de minha tia. Prazeres impossíveis no Rio. Também havia mais tarde aos 14 anos os retiros espirituais no Mosteiro de São Bento e as carnes fogosas de uma prima. Va bene.

Para o mosteiro beneditino de Olinda eu levava montanhas de livros, meu gosto por Arte, a vontade de aprender o Barroco. Ficava uma ou duas semanas. Lá eu lia, ouvia gregorianos, engordava como um frade. Para a prima eu levava outros desejos, outro fogo, outras sevícias. Loucuras mais que bem bem-vindas, mais que bem aceitas.

Também haviam os encantos das agulhas fritas na beira do Capibaribe, as piscinas mornas da Boa Viagem, os azuis, os sussurros, as madrugadas, as esquinas da cidade de Bandeira, de João Cabral, de Nelson. A cidade de João Câmara me mostrava outros amarelos e vermelhos. Outros fins de tarde. Numa dessas tive uma revelação. Um acaso, uma epifania mudava meus ouvidos, mudava minha vida.

Chantageando minha mãe por ter deixado minhas areias de Ipanema eu exigia compensações. Ela aceitava e pagava. Pagava em espécie.
Eu então caminhava em direção às agulhas fritas do Capibaribe. Numa destas tardes, caminhando por uma calçada à beira do rio das pontes, das lamas e dos caranguejos, ouvi um som inusitado, nunca ouvido. A música vinha de um bar. Entrei extasiado. Adolescente pedi uma coca-cola.

Ouvi melhor a música que me magnetizava. Uma harmonia incomum. Voz rouca, negra. Ouvi um lamento. Vinha de uma juke-box.
Olhei para ela, caixa colorida, luzes piscando. Não ela, mas era a música que me hipnotizava.
Ray Charles, um desconhecido para um beatlemaníaco. I Can´t Stop Loving You. Era diferente, era novo, era arrebatador. Ouvi, quis ouvir de novo. Fui ao caixa, comprei uma ficha coloquei na máquina.

Ray Charles cantou novamente. Fascinado comprei mais fichas. Repeti a música várias vezes. A canção me transformava. Aprendi numa cidade nordestina a gostar de blues. Quando voltei ao Rio meu destino estava traçado. Blues e jazz até hoje são minha trilha sonora.
Na beira daquele capibaribe-mississipi aprendi a doçura, a agonia do blues, o mistério do jazz.

Muitos anos depois, já muito adulto, mas da mesma forma desprevenido, fui atingido por uma graça semelhante. Outra paixão tomava meu corpo. Recife mudava minha vida novamente. Coloria minha alma com outro amor. Marcava minha carne para sempre.
I can’t stop loving you. 
It's useless to say.
So I'll just live my life in dreams of yesterday.
Those happy hours that we once knew.