Carta Aberta a Virgínia

Cara Prima, 

Como sabes por nossos papos cada dia gosto mais de Sampa. Não que antes não gostasse pois sempre estive muito por aqui à trabalho ou em turismo cultural ou gastronômico. Mas morar é diferente. 
Moro na Liberdade, que apesar de ser um bairro de classe média baixa me fascina por ser um bairro de japoneses e mais recentemente de nordestinos, um mix só possível nesta paulicéia desvairada. Aqui faço minhas refeições num restaurante chinês onde normalmente sou o único ocidental, numa fantástica pizzaria ou em algum restaurante nordestino que tem todas aquelas delícias sertanejas que bem conheces. Nunca minha gula viveu tão feliz. 

Por conta deste mix étnico, asiático-nordestino, a paisagem feminina é esteticamente muito rica, com excessos, ausências, curvas, olhos, cores e obliquidades muito agradáveis. Há pudores e oferecimentos típicos, como podes adivinhar. Mas prefiro discutir isso com um primo, não com uma prima.
Aqui na Liberdade tenho a liberdade de como luterano frequentar minha própria igreja numa igreja de japoneses, desfrutando do incrível prazer estético de ouvir em japonês um culto cristão-alemão.
Também aqui desfruto da liberdade de trabalhar em home-office o que me resguarda do stress paulistano. Mas como algumas vezes por semana tenho reuniões de trabalho na região da Paulista ou da Berrini eis que de repente em alguns minutos me transporto da provinciana Liberdade para Noviorque.
Tudo isso para não falar das apocalípticas tempestades em cujos efeitos especiais estou me viciando.

Infelizmente Sampa me transformou num hipócrita.
Aqui sou visto como carioca. Normalmente sou reconhecido como um carioca, como realmente o sou, por conta do que ainda resta de meu sotaque original. Mas em certas situações passo por nordestino por ter família em Pernambuco e Alagoas, por conhecer tão bem aqueles lugares. Já em outras passo por baiano por ter vivido tanto tempo em Salvador e amar tanto aquela terra de brisas e azuis. E quando nenhuma dessas situações me é conveniente passo por nada, pelos anos que vivi em Portugal, Inglaterra e Alemanha.
Um comportamento lamentável, vergonhoso, mas que não deixa de ser muito divertido.

Agora mesmo cheguei do jantar. Despudoradamente, irresponsavelmente, degustei uma feijoada digna de uma gracia. O gentil cearense não parava de me perguntar: quer mais torresmo, quer mais farofa, quer mais couve? Nesta hora me lembrei do Tim Maia, durante um show, pedindo ao maestro da orquestra: - Mais grave, mais agudo, mais cordas, mais metais, mais retorno, mais tudo!

Mesmo assim guardo uma mágoa.
Não consigo entender como você minha prima que vives há décadas em São Paulo, uma pessoa de quem tanto gosto, pôde esconder de alguém que tanto lhe considera, guardar com tanto zêlo eu diria até de forma cruelmente egoísta, sonegar ao sangue do seu sangue um segredo tão agradável.
Imperdoável prima!

Beijos do Ivan