Lituânia, Junho de 1941. Já fazia pouco mais de três anos que o pequeno país do Báltico tinha aceitado que a região de Memel fosse incorporada à Alemanha. A região tinha sido anexada, a pedido da Chancelaria alemã, muito antes de começarem as hostilidades na Europa.
Agora em plena guerra, às vésperas da Operação Barbarrossa de invasão da vizinha Rússia o clima estava um pouco mais agitado no Báltico, com maior presença de tropas alemãs no país.
Mas com a chegada do verão a população estava mais preocupada em desfrutar do esquecido calor, dos longos e agradáveis dias de sol, depois dos rigores do inverno.
A presença alemã era de certa forma confortável para os nacionalistas lituanos sempre preocupados com a ameaçadora vizinha Rússia. Era de certa forma um fator de equilíbrio.
Mas muito pouca gente estava pensando em política naquela última semana de junho, o alegre verão trazia de volta o colorido para o dia-a-dia das pessoas. Além de tudo fazia uma tarde agradável e as pessoas estavam nas ruas de Kowno desfrutando das alegrias do verão, sem se preocupar muito com os boatos de perseguições recém-iniciadas contra os judeus pelo Einsatzgruppe A.
Afinal isso era um problema dos alemães e dos judeus. Falava-se de milhares de perdas, de ações ferozes, mas boatos são boatos. Além de tudo os nacionalistas lituanos estavam ajudando no trabalho da Gestapo e da SS, colaborando voluntariamente no interesse que tinham em comum. Os lituanos não eram inteiramente simpáticos aos filhos de Israel.
Assim se passavam os dias, assim se passava aquela tarde agradável de verão na pequena Kowno. No centro da cidade, casais passeavam, jovens namoravam, crianças brincavam, homens bebiam, mulheres faziam compras. Um dia festivo na simpática Kowno.
De repente surge um homem com um enorme porrete na mão. Um lituano. Um nacionalista lituano. Ele gira o porrete no ar com muita agilidade e destreza atingindo com precisão a cabeça de um judeu. O judeu cai no chão ensangüentado. O homem com extrema habilidade continua a usar o porrete até dissolver a cabeça de outro judeu. Surge mais um, o lituano parte para cima dele e rodopiando como um bailarino, girando o porrete no ar atinge com violência o judeu que é atirado à distância. Uma judia aparece para acudir seus irmãos de fé. O lituano com agilidade num movimento preciso atinge o rosto da mulher, faz um volteio acrobático e atinge-a novamente desta vez na parte de traz da cabeça.
Já são três corpos no chão, uma pequena multidão já esta em volta vibrando com a performance do compatriota. Chegam mais judeus. O lituano acelera seus movimentos, gira em círculos e atinge a cabeça de um, de mais outro, de mais outro ainda. A multidão grita, aplaude. Chegam mais judeus atordoados com a visão do homem e seu enorme porrete. A multidão empurra os judeus para o lituano.
Ele está eufórico, a multidão empurra os judeus para o centro da grande roda que se formou. Ele gira e gira o porrete, o sangue espirra da cabeça dos judeus, já são mais de dez, alguns agonizando, outros gemendo, outros gritando. O lituano não para. A multidão delira, aplaude, pede mais.
O lituano começa a empilhar os judeus, uns por cima dos outros. O sangue escorre dos que estão em cima para os que estão em baixo. A pilha de corpos treme, alguns corpos estão tendo convulsões. O sangue escorre pelo chão.
Chega uma turma alegre trazendo mais judeus, eles os seguram e os vão liberando um a um para o meio da roda, vão entregando um a um ao homem do porrete. O homem exibe um desempenho atlético, não se cansa, já atingiu mais de vinte. A pilha de corpos aumenta. O homem gira e roda freneticamente, atinge mais um, atinge mais outro sempre na cabeça. A cada golpe a multidão aplaude. O som do porrete arrebentando as cabeças é contagiante. Arranca aplausos.
As mulheres colocam seus filhos nos ombros para que eles possam ver melhor. As pessoas se acotovelam à procura de um lugar melhor para desfrutar do espetáculo. Aplaudem, incentivam.
Soldados alemães assistem a tudo discretamente, não interferem, alguns tiram fotos, outros sorriem. O homem e seu porrete giram num balé frenético, o sangue espirra das cabeças atingidas, o sangue espirra nas primeiras filas. O lituano atinge e empilha os corpos. Já são mais de trinta. Sobe em cima deles e os atinge novamente, sempre nas cabeças, até esmigalha-las. Os miolos saltam para o chão. Ele golpeia o rosto de um até os olhos saltarem das órbitas. O homem solta um rugido de vitória.
As mulheres gritam aplaudem, incentivam aos gritos, o lituano agradece, mostra o porrete ensangüentado, o povo ovaciona. Trazem mais judeus para o espetáculo. O lituano gira incansável. Atinge com precisão um a um na cabeça com golpes certeiros. O porrete gira rápido, o porrete sobe alto e atinge um adulto, o porrete gira baixo e atinge uma criança. A mãe se desespera e antes que possa abraçar o filho é atingida ferozmente na cabeça. O lituano pega a criança com as duas mãos, levanta-a no ar e a atira voando em direção à pilha de corpos.
O lituano limpa o sangue das mãos no próprio rosto. Lambe o sangue dos dedos num gesto indecente. As mulheres gritam, fazem gestos obscenos. A pilha de corpos aumenta, já são quase quarenta.
Chegam mais judeus, eles vêm a cena, se horrorizam, o lituano solta uma gargalhada estrondosa, os judeus tentam fugir, o povo não permite, o povo os empurram aos pontapés para o homem incansável e para seu poderoso porrete, que gira e gira no ar, atingindo mais e mais cabeças. A pilha de corpos aumenta, está enorme já são quase cinqüenta. O sangue inunda o chão.
Já se passaram quarenta e cinco minutos.
O homem de repente para. Coloca seu porrete no chão. O povo se cala. O homem toma um enorme gole de bebida pelo gargalo de uma garrafa. O homem deixa o porrete no chão e troca de instrumento.
Ele é um músico. Ele toma seu acordeom, sobe na pilha de corpos ensangüentados, olha para o brilhante céu azul de verão e toca com furor patriótico o hino nacional da Lituânia.
O povo aplaude e canta junto.
O general de Exército Ernst Busch, comandante da área da Wehrmacht, tomou conhecimento e registrou o fato como disputa interna lituana para a qual ele não tinha autoridade para interferir.
Hannah Arendt tem razão.
Hannah Arendt tem razão.