A Cortina e o Muro

Segunda Guerra Mundial.
Terça-Feira, 8 de Maio de 1945.
O maior conflito da história da humanidade acabara. A maior operação logística, o maior numero de recursos já empregados pelo homem em um único objetivo, a maior movimentação geográfica de povos.
O maior saldo de perdas humanas, o maior genocídio tinha chegado ao fim. Com três grandes vencedores: Rússia, Estados Unidos e Inglaterra, nessa ordem.
Ao fim do maior conflito armado da humanidade, o mundo surgia dividido em duas partes bem determinadas.
Capitalismo no Ocidente, Socialismo a Leste.

Cortina de Ferro.
Terça-feira, 05 de Março de 1946, Fulton, Missouri, Estados Unidos.
Dez meses depois do fim da Segunda-Guerra Mundial dois dos três vencedores estavam lado a lado.
Churchill, ao lado de Truman, fazia um discurso provocador e batizava uma fronteira.
- De Stettin no Báltico a Trieste no Adriático, uma cortina de ferro baixou através no Continente. Por trás desta linha jazem todas as capitais de antigos estados da Europa central e oriental...todas aquelas cidades...e suas populações estão submetidas...não apenas à influência soviética mas a um altíssimo e crescente grau de controle por Moscou.

O discurso sintetiza a Guerra Fria e atacava o outro sistema e seu líder. A União Soviética e Stalin, o senhor da guerra da guerra que terminara meses atrás.
Á partir dali a Guerra Fria e o sistema soviético durariam mais de quarenta anos.

O enfrentamento mais caro, complexo e sofisticado da história onde dois sistemas ideológicos lutariam lentamente por quase meio século.
Um período que deixou a humanidade no limite de um holocausto nuclear, à beira de sua própria extinção.

Muro de Berlim.
Desde que uma greve em 1953 na Alemanha Oriental se transformara em manifestações contra o governo reprimida por tanques soviéticos, que o regime se tornara cada vez mais autoritário.
A partir de 1955 cerca de 20 mil pessoas estavam deixando o país todo mês em direção à Alemanha Ocidental.
Em 1961 aproximadamente 30 mil estavam saindo por semana. A dimensão das saídas se transformou em crise.

Sábado, 18 de Agosto de 1961, Berlim, Alemanha.
22:00hs
Depois do fechamento da fronteira uma semana antes com arame farpado, um muro de cimento começa a ser construído da noite de sábado para a madrugada de domingo.
Um mês antes da chegada do Outono um muro caía sobre a cidade.
01:30hs
Seis caminhões chegam a Potzdamer Platz, ao sul do Portão de Brandenburg, carregados com dezenas de placas de concreto.
01:54hs
O tráfego de trens entre Berlim Ocidental e Oriental é interrompido.
02:10hs.
Chegam os vopos – volkspolizei, a polícia do povo – carros de bombeiros e uma brigada de pedreiros. Começa a construção.
05:00hs
Pouco depois do amanhecer todos se retiram deixando o primeiro pedaço do Muro de Berlin passando a centímetros da entrada do metrô.

A cidade amanhece dividida, famílias estavam separadas, pessoas que saíram na noite de sábado não puderam voltar para casa.
O mundo amanhece com um muro separando Berlim Ocidental de Berlim Oriental.

Sexta-Feira, 21 de Agosto de 1961.
Os americanos tinham um posto de controle na Friedrichstrasse com Zimmerstrasse. Construíram uma casinha de madeira no meio da Friedrichstrasse, o Checkpoint Charlie.

Quarta-Feira, 23 de Agosto de 1961.
A Alemanha Oriental proíbe a entrada de berlinenses ocidentais em Berlin Oriental.

Quinta-Feira, 24 de Agosto de 1961.
Gunther Liftin de 24 anos é morto ao tentar atravessar o Muro, cinco dias depois da construção.
A primeira vítima fatal dos grepos – policiais da fronteira – que tinham ordens de atirar para matar. Muitos outros marcariam com sangue a história do Mauerbau.

Sexta-Feira, 27 de Agosto de 1961.
Crise no Checkpoint Charlie.
A primeira crise. Duas semanas depois da construção do Muro.Catorze meses antes da crise dos mísseis em Cuba. 
A crise no checkpoint começou quando os soviéticos impediram a entrada de um oficial americano que pretendia ir ao teatro.
O general Lucius Clay, assessor pessoal de Kennedy ordenou a escalada militar, mandou os tanques se posicionarem e apontarem os canhões. 
O bloco soviético reagiu posicionando os seus.

Trinta tanques completamente carregados de munição ficaram frente a frente no meio de Berlin. Soldados dos dois lados da fronteira apontaram metralhadoras uns para os outros.
Krushov e Kennedy usaram pela primeira vez o telefone vermelho direto do Kremlin para a Casa Branca.
Orquestrados pelos dois os tanques recuaram dez metros.

Sábado, 01 de Junho de 1963.
- A Wall is much better than a War.
Em visita a Berlin o presidente americano John F. Kennedy diz,
- Não é uma solução muito simpática, mas um muro é muito melhor que uma guerra.

O Muro de Berlin iria ter 155 km de comprimento, 66,5 km de gradeamento metálico, 302 torres, 127km de redes eletrificadas, 255 pistas de corrida para guardas e cães.
A Guerra Fria tinha acabado de materializar seu mais poderoso ícone.
Com pragmatismo ambos os lados da Guerra Fria concordaram com a iniciativa alemã.
Não há inocentes na construção do Muro, só vítimas.

A Queda da Cortina.
No final de 1988 o ministro do Interior da Hungria, Iztván Horváth, havia sugerido ao primeiro ministro Miklós Néméth que a cerca de eletricidade de baixa tensão da fronteira fosse desativada. A cerca estava enferrujada, não funcionava direito e era motivo de constrangimento.
Vinte e cinco milhões de turistas entravam na Hungria. Há anos que os húngaros tinham permissão para viajar para o Ocidente, mais de seis milhões por volta de 1989.
Os incidentes por ano na fronteira eram de 200 a 250 estrangeiros tentando cruzar ilegalmente, a maioria de alemães orientais e romenos.
No máximo 10 húngaros por ano criavam problemas: bêbados, alunos com notas baixas e maridos fujões.
A reforma da cerca iria custar mais de 50 milhões de dólares. Um gasto inútil.

Sexta-Feira, 3 de Março de 1989, Kremlin, Moscou, Rússia.
O primeiro-ministro húngaro entra na sala de Gorbatchov para avisar que ia desmantelar a cerca. A fronteira com a Áustria ficaria aberta, apenas com controle padrão de passaportes.
Gorbatchov disse,
- Temos um regime rigoroso em nossas fronteiras, mas também estamos ficando mais abertos.

Caía a Cortina de Ferro. Melancolicamente, por falta de recursos e vontade de mantê-la.

A Queda do Muro.
Domingo, 05 de Fevereiro de 1989.
Chris Gueffroy e o amigo Christian Gaudian atravessam na área de Britz, que separava a parte oriental do bairro de Neukoln na parte ocidental.
Com uma enxada amarrada a uma corda eles escalam a primeira barreira de três metros e meio de altura. Cinco metros depois havia outra barreira mais baixa que eles atravessaram facilmente. A barreira disparou o alarme.
Holofotes, alarmes. Os dois correm em direção a terceira e ultima barreira. Dois grepos estavam lá. Dispararam.
O amigo cai atingido no pé.
Chris cai perfurado por dez balas no peito. A última vítima do Muro, meses antes da Queda. Íngua Heinrich que disparou os dez tiros ganhou uma condecoração e 150 Marcos, 75 Euros, 180 Reais.

A história contemporânea se divide entre antes e depois da Queda do Muro de Berlin.
O Muro dividia uma cidade, uma nação. Separava simbolicamente um continente e o mundo em dois sistemas político-ideológicos, militares e econômicos.

A Alemanha Oriental ao fim de um longo processo de falência econômica estava enfrentando, novamente, um movimento crescente de seus cidadãos fugindo do país. Contornando o Muro pela Hungria.
Viajar para a Hungria, também do bloco socialista era permitido ao contrário de cruzar o limite com a Alemanha Ocidental, escalar o Muro de Berlim ou cavar túneis por baixo da fronteira, que era fatal.
Os alemães saíam de “férias” para a Hungria em seus Trabants, dirigiam em direção ao Lago Balaton até a cidade de Sopron no oeste do país, cruzavam a fronteira aberta para a Áustria e seguiam para a Bavária, na Alemanha Ocidental.
Aos milhares.
Centenas de carros ficavam abandonados nas estradas, a trilha Trabbie, o novo Êxodo Alemão.

Domingo, 10 de Setembro de 1989.
A Hungria anuncia oficialmente que os controles da fronteira serão levantados à meia-noite. A Alemanha Ocidental envia ônibus para receber os alemães na Áustria e traze-los. Mais de 8 mil no primeiro dia. Em três dias mais de 18 mil.
A sangria aumentava. A trilha Trabbie engarrafava as estradas. Faltavam professores nas escolas, técnicos nas fábricas, funcionários nos escritórios.
Os serviços básicos e a produção estavam comprometidos.

Desesperado, o governo de Berlim muda as rigorosas regras de viagem ao exterior tentando acalmar a população e conter o êxodo em massa.

Berlim Oriental, Segunda-Feira, 6 de Novembro de 1989.
Krenz que havia substituído Honecker prometeu uma nova lei para viagens. A nova lei permitia que as pessoas viajassem 30 dias por ano, desde que recebessem autorização do Ministério do Interior.
O processo podia demorar um mês e só permitia que as pessoas levassem 15 marcos, o suficiente para uma cerveja e um sanduíche.
A pessoas apelidaram a lei de “Volta ao Mundo em 30 dias, mas como pagar?”
Krenz se irrita e dá dois dias ao Ministério do Interior para que regras mais razoáveis fossem criadas.

As manifestações e as piadas cresciam.
Qual a diferença entre Honecker e Krenz? Krenz tem vesícula.
A DDR – Deutsches Dermokratik Republik – República Democrática Alemã, o nome oficial da Alemanha Oriental foi apelidado para Deutsches Demonstrations Replublik, Republica Alemã das Demonstrações.

Berlim Oriental, Quinta-Feira, 9 de Novembro de 1989.
Para tentar conter o êxodo regras mais liberais iam ser implantadas.
A nova lei não abria o Muro, mas dizia que qualquer pessoa com permissão de saída, passaporte e visto poderia deixar o país através de qualquer ponto da fronteira com a Alemanha Ocidental. A lei entraria em vigor no dia 10 de Novembro quando os requerimentos de saída passariam a ser recebidos nos postos de autorização.

Na sede do partido Comunista em Werderscher Markt, Egon Krenz, o recém empossado líder do país, leu devagar a nova lei para que depois ninguém pudesse dizer que não havia entendido.
Os altos dirigentes ouviram e aprovaram por unanimidade.

Gunther Schabowski, chefe do partido em Berlim, entra na sala de Krenz.
Ele não havia participado da reunião anterior onde tinha sido apresentada a nova lei. Mas ele seria o porta-voz que iria para coletiva de imprensa anuncia-la.
Schabowski perguntou a Krenz se havia alguma coisa a mais para ser anunciado. Krenz disse que não e lhe entregou o texto integral do decreto.

Schabowski chega para a coletiva pouco antes da 18hs. A sala estava repleta de jornalistas e televisões ocidentais. A coletiva começa pontualmente às 18hs.
Ele levou uma hora falando de outros assuntos, reformas administrativas e ministeriais, antes de tocar no assunto principal.
Leu o texto do decreto e explicou que a nova lei “tornaria possível a todo cidadão deixar o país cruzando os pontos de passagem entre a RDA e RFA sem demora”, entre a oriental e a ocidental.

Os jornalistas ficaram surpresos.
Disseram que não estava bem claro, pediram mais explicações.
Schabowski não conhecia bem o decreto. Estava nervoso, suava muito. Os jornalistas pressionavam.
Tom Brocaw da rede NBC americana perguntou,
- Quando essa nova regra entra em vigor?
Schabowski estava inseguro, suava, remexeu os papéis à sua frente, olhou o decreto que não conhecia direito, revolveu outros documentos. Após uma pequena pausa, murmura um palavrão e responde,
- Segundo me consta, isto é, humm...Imediatamente, sem demora.

Um dos erros administrativos mais monumentais da História começou a ser editado pelas agencias de notícias de todo o mundo. Compreensivelmente algumas televisões da Alemanha Ocidental noticiaram de forma hesitante. O programa Today da ZDF noticiou as novas regras.
A emissora ARD explode a notícia.
Hans Joachim Friedrichs, ancora do noticiário precipita os fatos:
- A Alemanha Oriental está abrindo suas fronteiras, os portões do Muro de Berlim estão abertos.
Não estavam. Ainda.
Quando o noticiário acabou uma multidão estava na Bornholmer Strasse próxima de um dos postos de controle de fronteira.

Harald Jager, o comandante da guarda de fronteira próximo da Bornholmer Strasse não tinha assistido à coletiva de imprensa. A multidão exigia o direito de cruzar a fronteira e gritavam,
 – Schabowski disse que poderíamos.
Jager contactou seus superiores para checar. A multidão pressionava para cruzar o posto. Ninguém confirmava nada para Jager.

Mais de 20 mil pessoas já estavam se espremendo na região próxima ao posto de controle. Os carros estavam bloqueavam as ruas vizinhas.
Jager estava cada vez mais preocupado. Uma hora havia se passado e sempre que ele contactava seus superiores ouvia a mesma resposta, eles mandavam esperar.
- Eu só conseguia pensar em evitar um banho de sangue.Havia tantas pessoas que elas não tinham espaço para se mover. Se alguém perdesse a cabeça, se o pânico começasse elas seriam esmagadas.
Jager toma a decisão por conta própria e ordena a dois de seus homens que levantassem o portão vermelho e branco.
A multidão explode em aplausos. Jager acena para ela,
- Passem.

A Alemanha Oriental, junto com o Muro de Berlin, tinha efetivamente deixado de existir às 22:45hs de uma quinta-feira cinzenta e fria de outono, que começara calmamente como um dia qualquer. Um dia comum que não prometia surpresas.

À meia-noite todos os seis postos de controle ao longo da fronteira já estavam abertos. Uma multidão enorme de alemães se formara ao longo do lado ocidental do Muro.
De braços abertos, com flores, com champagne. A festa crescia em animação no posto da Invalidstrasse.
As duas partes da cidade se unem, bebem, dançam, comemoram na maior festa popular da História.

O Muro caíra. Dramaticamente, sem que ninguém decidisse acaba-lo.
Doze mil grepos retornam aos quartéis.
- Nós, alemães, somos agora o povo mais feliz do mundo, disse o prefeito de Berlim. 

Na casa de Schabowisk, sua sogra de origem russa perguntou à filha Irina o que estava acontecendo.
- Abriram a fronteira.
- Então vamos ter capitalismo?
- Provavelmente sim.
- Então vou ficar mais um pouco para ver como é isso. 

As imagens da Queda do Muro de Berlim são a mais poderosa representação do fim de uma era na história da humanidade.
A derrubada do Muro também é um dos maiores momentos da era da informação instantânea.
Ele caiu, em transmissão direta para as televisões do mundo ao vivo e à cores. Com champagne, flores, musica e muitos abraços.

Nenhum estadista, governo ou agencia de inteligência foi capaz de prever o momento.
Nem o premiê soviético, nem o presidente americano, nem o chanceler alemão.
Nem Gorbatchov, nem Bush, nem Kohl.
Na noite da Queda do Muro de Berlin, Kohl nem sequer estava na Alemanha, estava em Varsóvia e previa que o Muro só cairia dentro de anos.
Pego de surpresa, Kohl brincou com seus amigos poloneses disse que estava na festa errada e voou para a festa certa.

Gorbatchov só soube da Queda do Muro na manhã seguinte.
Igor Maksimichev, embaixador russo em Berlim, cinco horas depois da queda recebeu um chamado: O que está acontecendo com o Muro?
Gorbatchov pediu cautela a Kohl. Comunicou-se secretamente com Bush, Margareth Thatcher e François Miterrand, pedindo prudência.

Bush assistiu a queda pela rede CNN.
Milt Bearden analista sênior da CIA admitiu que “escabrosamente” não havia nenhum espião no local que pudesse informar alguma coisa.
Tudo que a CIA e a Casa Branca souberam foi através do noticiário da CNN, como todo mundo que tem uma televisão.
No dia seguinte Bush gaguejou por meia hora em declarações patéticas.

Fim de uma Era.
O Portão de Brandenburg foi reaberto no sábado 23 de Dezembro de 1989, as festas duraram três dias. As portas para a Reunificação Alemã estavam abertas.

O Muro de Berlin acabara.
Não era para ter acabado nem naquele dia, nem naquela hora, nem daquela maneira.
O fim do mais poderoso ícone da Guerra Fria foi precipitado por um inacreditável erro de leitura numa entrevista coletiva à imprensa.
Três décadas que mantiveram o mundo suspenso à beira de um apocalipse nuclear terminavam em forma de farsa.
Tudo que é sólido desmancha no ar – Karl Marx, 1848.