Gosto muito tanto da Alemanha quanto dos alemães. Tive e tenho amigos alemães ou filhos deles, e apesar da fama de frios e rudes, algumas das pessoas mais cultas, gentis e sofisticadas, alguns dos maiores gentlemen que conheço são alemães. Morei e trabalhei lá.
Gosto da língua alemã por sua precisão, pelo foco em conceitos que exprimem completamente em uma palavra idéias e situações inteiras.
Admiro a quantidade enorme de músicos, teólogos, poetas, escritores, teatrólogos, filósofos e cientistas que a Alemanha produziu. A história da humanidade seria completamente diferente, irremediavelmente mais pobre sem a contribuição alemã. Definitivamente a Alemanha e os alemães são um dos maiores patrimônios da humanidade.
Tive o privilégio de conhecer alguns nazistas.
Um deles lutou na frente russa e sempre reservava um prisioneiro para, depois do jantar, praticar tiro ao alvo. Ele os libertava e os mandava correr avisando que iria atirar, mas caso errasse o prisioneiro estaria livre. Nunca errou um tiro, sempre acertava no meio da nuca dos ruskies.
Outro refez a vida no Brasil e trabalhava tranqüilamente na fabrica da Volkswagem, a “fauvê”, em São Bernardo do Campo. Um outro lutou, ainda adolescente, na frente russa já no final da guerra. Foi feito prisioneiro e passou alguns anos num campo de prisioneiros na Sibéria. Fugiu a pé do deserto polar e conseguiu chegar a Paris.
Todos eles sem exceção eram e são homens honrados, gentis, educados, encantadores.
Por isso é tão difícil, e fascinante, tentar entender a Alemanha e o Nazismo.
Mesmo oitenta anos depois, com a história exaustivamente estudada, ainda é complicado ter uma visão completa e imparcial da Alemanha. Os historiadores Boris Fausto, Ian Kershaw, Joachim Fest e Nobert Elias ajudam a clarear um pouco o enigma alemão.
O Nazismo subverteu a noção política de Direita, por definição conservadora, ao incorporar a dinâmica das revoluções. Não é possível interpretar o fenômeno nazista sem levar em conta a participação das massas embaladas pelo sonho do socialismo nacional, da unidade da pátria e da supremacia da raça ariana.
A análise comunista feita pela III Internacional, que não corresponde necessariamente ao marxismo, baseou-se na visão leninista de um presumido colapso iminente do Capitalismo. Assim, elementos reacionários e do capital financeiro teriam manipulado os movimentos de massa do pós-guerra a fim de usa-los para seus interesses. Por esta visão o Nazismo estaria a serviço do capital financeiro na instrumentalização da classe operária.
Acrescente-se a política desastrosa do KPD, Partido Comunista Alemão, nos anos 20 e nos primeiros anos 30, minimizando a ameaça nazista e identificando os social-democratas do SPD como o inimigo principal. Nas eleições de setembro de 1930 o KPD alcançou 13,1% dos votos e o SPD 24,5%. Os dois juntos tinham 37,6%, mais que o dobro dos 18,3% do NSPD nazista.
Depois, orientados por Stalin, os comunistas alemães se aproximaram dos nazistas para tentar enfraquecer os social-democratas. A aliança natural de comunistas e socialistas poderia ter evitado a chegada dos nazistas ao poder. Trotski comentou: Essa gente nada quer aprender.
Tanto a elite econômica liberal quanto comunistas e social-democratas não foram capazes de entender a ameaça nazista. O Nazismo radicalizou as teorias de superioridade racial e anti-semitismo. A crença central do Nazismo na grandeza da Alemanha, da raça ariana e sua luta pela pureza racial gerou esta mudança.
A obtenção dessa pureza biológica implicava na submissão dos inferiores, os eslavos, ciganos e outras etnias. E principalmente na destruição total dos judeus, a Endlösung, a Solução Final.
Nem a discriminação histórica, os pogrons ou a radical expulsão dos judeus da Península Ibérica se aproximam em virulência dos objetivos de um Estado que decidiu erradicar os judeus do planeta.
O anti-semitismo nunca havia estado antes no núcleo de uma formação social.
A Solução Final não se explica por critérios racionais. Dentro do processo civilizatório o Nazismo representa um colapso da civilização.
Existe a impressão de que o Nazismo seria um resultado inevitável da história germânica.
Desde Armínio, o Querusco, passando pelos imperadores medievais, por Frederico, o Grande até finalmente se chegar em Bismarck haveria na história alemã um hitlerismo latente.
O povo alemão carregaria atávicamente uma propensão à barbárie, uma tendência à violência e uma nostalgia da vida selvagem das tribos bárbaras que assolaram a Europa.
Haveria também em parte do pensamento alemão um elitismo que desprezaria a essência da política. Na formação da burguesia alemã não existiriam as características do próprio Liberalismo. As elites também não teriam desenvolvido a consciência de cidadania como todos os regimes nascidos da Revolução Francesa.
Muitos historiadores acreditam que a elite alemã assustada com o crescimento dos comunistas e temerosa de um possível colapso do capitalismo teria manipulado os movimentos de massa através dos nazistas. Por esta visão os nazistas teriam sido um instrumento do Capital alemão.
De fato o capital financeiro e industrial colaborou e se beneficiou da ascensão nazista, mas foi o partido e o Estado nazista quem determinou os rumos da política.
Os nazistas em geral encaravam com desprezo a grande burguesia “decadente” que lhes apoiou e da qual dependeram. Vide o excelente Os Deuses Malditos de Luchino Visconti.
Poderia-se conectar o surgimento do Nazismo com a política alemã do final do século XIX com suas tradições autoritárias, feudais e ausência de uma autêntica revolução burguesa.
Assim a Alemanha estaria numa fase pré-capitalista enfrentando as contradições de se transformar num estado moderno.
Seria uma situação semelhante a da Rússia semifeudal, ainda menos capitalista e que também sucumbiu ao autoritarismo da revolução comunista.
Também não se compreende o Nazismo considerando apenas a conjuntura histórica internacional e européia, a profunda crise de 1929 e o acirramento dos conflitos de classes nos movimentos proletários e na Revolução Russa.
Interpretações personalistas centradas em Hitler começam a perder força. Atribuir tanto poder à vontade do Führer seria concordar com o próprio argumento nazista mostrado em Triumph Des Willens , o magnífico filme de propaganda de Leni Riefenstahl.
Nenhuma dessas visões explica satisfatoriamente, isoladamente ou mesmo em conjunto, a Alemanha Nazista. Falta alguma coisa para consolidar todas elas.
Para se entender o colapso da civilização alemã é preciso analisar a formação do Habitus germânico.
Habitus é o resultado de todos os acontecimentos ao longo da história que definem a capacidade de sentir, pensar e agir de cada indivíduo que compõe um povo.
Para entender a catástrofe alemã é preciso analisar a formação da nacionalidade e da tradição germânica. Ela criou as condições para o nascimento do regime que potencializou suas características. O fenômeno nazista é indissociável da esmagadora participação popular sonhando Deutschland Über Alles.
Cenário Histórico.
O assentamento dos povos germânicos.
Desde seus primeiros assentamentos os Germanos enfrentaram freqüentes invasões das hordas dos Hunos. Tanto Ostrogodos quando Visigodos foram alvo da fúria asiática. Os Hunos destruíram estruturas sociais dos Ostrogodos que terminaram por emigrar para a região dos Visigodos. Mais tarde os Visigodos também foram atacados.
É preciso considerar a situação instável das tribos de fala alemã, assentadas a oeste do Rio Elba.
Paranoicamente rodeadas de tribos inimigas, historicamente lutando por espaço vital, o mesmo Lebesraum de Hitler.
As características do I Reich.
O Sacro Império Romano-Germânico, no século X, estava cercado por estados vizinhos que se organizaram, se pacificaram internamente e se transformaram em monarquias centralizadas.
Já o Sacro Império se manteve como uma frágil integração de senhores regionais. Antes da Unificação as regiões alemãs eram uma colcha de retalhos de pequenos reinos, principados, baronatos e cidades livres.
Divisões internas geraram intermináveis conflitos que favoreceram invasões e guerras como a dos Trinta Anos no começo do século XVII, a invasão de Luis XIV no fim do século XVII e a de Napoleão no século XIX.
A Guerra dos Trinta Anos terminou com a perda de um terço da população alemã.
A formação do II Reich.
A Prússia eliminou os rivais internos e tornou-se dominante no contexto alemão.
Na segunda metade do século XIX a dinastia prussiana de Brandenburg executou a estratégia militarista Feuer und Schwert, Ferro e Sangue, de Bismarck. Ele consolidou a Prússia ao unir os pequenos territórios alemães na luta contra inimigos externos.
Em 1864 na guerra contra a Dinamarca anexando o Schleswig-Holstein.
Em 1866 na guerra contra a Áustria se consolidando como líder do mundo germânico.
Em 1870 na guerra contra a França.
Só depois da vitória na guerra franco-prussiana se realizou a Unificação Alemã. O II Reich foi fundado em 1871 à Ferro e Sangue por Bismarck e seu primeiro imperador, Guilherme I da Prússia, foi coroado na França vencida. No Palácio de Versalhes.
Neste momento, no final do século XIX, poderia ter se revertido o quadro de fragilidade nacional através da Unificação Alemã e de sua consolidação.
Mas em conseqüência das rivalidades dinásticas com outras potências e do expansionismo inicial do capitalismo, um estado frágil recentemente unificado entrou numa nova guerra, sem possibilidade de vitória. O resultado foi à derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial e a humilhação do Tratado de 1919. No Palácio de Versalhes.
O II Reich alemão, a formação moderna fruto da Unificação Alemã, começou e terminou no Palácio de Versalhes. Hitler não se esqueceria desta humilhação e fez a França assinar sua rendição ao III Reich no mesmíssimo vagão de trem onde foi assinada a rendição alemã na I Guerra.
Esse tipo de simbologia constrói e vive no Habitus de um povo.
O Habitus Alemão.
Para dar sentido a este cenário histórico é preciso entender a formação do Habitus alemão.
Habitus não é sinônimo de caráter nacional.
Caráter nacional é a interação dos conceitos de Crenças e Pertença. O primeiro é o corpo da sabedoria popular, dos provérbios, ditados e canções. O segundo é o sentimento de pertencer a uma terra natal, a uma paisagem geográfica e humana.
Já o Habitus é o resultado de todos os acontecimentos e da experiência histórica.
No plano individual o desfecho das situações determina o desenvolvimento da personalidade.
No plano social, de forma semelhante, as experiências de um povo vão determinar seu Habitus. Ele estabelece a forma de sentir, pensar e agir.
Numa correspondência imperfeita com o plano individual, o caráter nacional de um povo seria a cultura e a educação formal.
O Habitus seria a mentalidade, a personalidade.
O Habitus alemão se ressente fortemente dos cortes e descontinuidades históricas. Sua formação é marcada por fragmentação, social e nacional, ao contrário dos vizinhos França, Inglaterra e Rússia.
Situações que deixaram marcas dramáticas de baixa auto-estima, depressão e crise de identidade no povo alemão.
A posição secundária na Europa dos fragmentados estados alemães contribuiu para a baixa auto-estima e produziu uma vontade ardente de unidade. O sentimento de não ser capaz de conviver sem discórdias produziu o desejo por um líder poderoso capaz de produzir unidade e consenso.
Após a derrota na primeira guerra mundial seguiu-se a implantação da república de Weimar, um regime democrático parlamentarista.
Este sistema democrático com seus inerentes conflitos entre correntes políticas reavivou os traumas das disputas que mantiveram o povo alemão por tanto tempo desunido.
Criou-se uma aversão pela democracia parlamentar.
Compreensivelmente ressurgiu a crença na necessidade de um líder forte e a nostalgia do modelo prussiano da Unificação Alemã, o Feuer und Schwert.
A valorização da violência. A derrota na guerra, a humilhação em Versalhes e o ressentimento em relação aos outros estados da Europa tiveram como conseqüência uma ênfase na necessidade de afirmação, grandeza e poder. Aversão à democracia, ressentimento em relação aos estados vizinhos, necessidade de grandeza e valorização da violência. Faltava a faísca para incendiar a nação.
Hitler construiu para si a imagem dramática de representante da raça alemã oferecendo um mundo de glória, superioridade racial e dominação.
Goebbels, que criou a propaganda moderna, transformou tudo isso numa obra-prima da comunicação de massas.
Speer, um dos maiores arquitetos do século, completou o sistema com uma estética arrebatadora.
Estava criado o mais poderoso mito da Modernidade.
Hitler prometia resgatar a nação do fosso de problemas em que a derrota militar, a depressão econômica e a democracia haviam criado. Tanto que a primeira tarefa e primeiro grande sucesso do Nazismo foi justamente destruir a democracia da República de Weimar.
Para o povo alemão a democracia representava um estímulo à discórdia, um fator gerador de divisão, não de unidade. O incêndio do Reichstag, o parlamento alemão, é simbólico no estabelecimento da Alemanha Nazista.
Exaltando os valores autoritários e guerreiros cristalizados na história alemã, Hitler sintetizou no Nazismo a solução para cada um dos fantasmas da alma alemã.
Unidade, ordem, território, orgulho racial e dominação. O Nazismo trazia em sua essência autoritarismo, violência, vingança e expansão territorial. A guerra era seu destino inevitável.
A arrasadora derrota na Segunda Guerra trouxe para a Alemanha, já dilacerada pela dinâmica destrutiva do poder nazista, mais divisão, caos, humilhação, ocupação estrangeira, perda de população e ainda mais perda de território. Mais um trauma terrível no Habitus alemão.
Na seqüência da derrota do Nazismo, além da perda substancial de território o que restou do país foi saqueado, tomado, ocupado. O país depois foi dividido em dois.
Com a divisão veio outra experiência igualmente autoritária, sendo agora comunista, na Republica Democrática Alemã, a Alemanha Oriental. Do outro lado da fronteira a existência da República Federal Alemã, a Alemanha Ocidental, como estado democrático pluripartidário foi imposta pelos aliados que escreveram sua Constituição.
De um lado uma imposição russa do outro uma imposição anglo-americana.
O povo alemão não teve como não aceitar a vontade de seus conquistadores, sem nenhum controle sobre seu próprio destino. Mais outro trauma devastador para o Habitus germânico.
Conversando com um amigo alemão, lá mesmo na Alemanha, ele se queixava da falta, insuportável para um alemão, da mitológica Ordnung. Queixava-se da desorganização, desperdício do governo e falta de fibra da parte da população que vivia conformada com os subsídios do seguro desemprego.
- Estamos precisando de outra guerra.
O espírito prussiano de Bismarck ainda assombra um dos povos mais cultos e civilizados da História.