Meu Pai.

Meu pai. Aguinaldo.
Foi das pessoas mais apaixonadas pela vida que jamais conheci. Alegre, bem humorado, irônico, extremamente sociável. Louco por mulheres. Minha mãe apaixonada por ele acabou se conformando. Se tornaram amigos.

Não apenas era apaixonado pela vida, ele colocava todas suas energias no que fazia.
Foi comunista na juventude, se dedicou fervorosamente, foi eleito o vereador mais votado de uma capital. Depois ao perder o mandato na época de Dutra passou a viver na ilegalidade. Papai e mamãe mudavam de casa constantemente, fugindo da polícia política da ditadura.
Nasci neste período clandestino. Para nos proteger meu pai nos escondeu a mim e a minha mãe num pequeno hotel em Itatiaia, próximo de Agulhas Negras. Em pleno inverno, as borboletas amanheciam coladas no lado de fora do vidro das janelas. Colorindo meu primeiro quarto.
Quando ele deixou o partido comunista se tornou advogado e administrador. Participou da fundação da holding da maior empresa de engenharia do país, hoje uma multinacional. Ficou rico.

Papai era pragmático, quase cínico no seu conhecimento da alma humana.
Tinha a rara capacidade de reconhecer um caráter em questão de minutos. Muitas vezes, trabalhando com ele, ouvi diagnósticos que duvidei, mas que logo depois se comprovavam.
Ele foi da primeira turma de MBA do Brasil, fundado pela Harvard University na Fundação Getúlio Vargas. Os alunos desta primeira turma, convidados a participar, foram selecionados entre os mais importantes executivos do país.
O curso era dado aos fins de semana em São Paulo, os executivos precisavam ir de avião, ficar dois dias e voltar. Isso no final da década de 50 quando viajar de avião, apenas uma vez, era um privilégio para poucos. Eles viajavam todas as semanas.

Lembro que numas férias chegamos atrasados ao aeroporto.
O avião já não estava no pátio. Já estava taxiando em direção à cabeceira da pista, já se preparava para decolar. Tínhamos perdido o voo. Papai resolveu rápido a questão. O avião retornou, voltou da pista para podermos embarcar. 
Ele tinha um grupo de amigos, juízes, empresários, que frequentavam uma barraca de praia. Lá ficavam os sábados inteiros comendo, bebendo. Um dia um deles fez algo desagradável, o barraqueiro chamou-lhes atenção. Papai sorriu e ali mesmo comprou a barraca. O barraqueiro passou de dono a empregado. Desde então a barraca só recebia os amigos e principalmente as amigas deles.

Papai era um gênio administrativo.
Chegou a ter e dirigir cinco empresas ao mesmo tempo trabalhando apenas no período da manhã. O resto do dia ele lia, fazia ioga, meditação, ginástica, curtia os muitos hobbies, se divertia com os amigos e amigas. Passava fins-de-semana na Califórnia meditando em um mosteiro budista.
Tinha habilitação naval de Capitão para navegação oceânica. Sempre teve uma lancha, um veleiro e uma escuna ao mesmo tempo. A escuna enorme só tinha uma única cabine. Imensa, cama redonda, espelhos, bar nas laterais. Um luxo para o amor.

Ele teve uma fazenda enorme. A fazenda era tão grande que tinha três pistas de pouso e dois aviões. Um dos pilotos era um militar reformado da Aeronáutica.
Um dia papai soube que uma família havia invadido e se instalado na fazenda. Foi até eles desarmado. Aproximou-se da barraca. Um homem aparece armado com uma carabina, aponta-lhe. Papai caminha até ele. O homem grita, ameaça atirar, papai continua a andar em sua direção. O homem engatilha a arma. Papai se aproxima, toma-lhe a arma, da-lhe uma surra com a coronha da carabina.
Adorava música e literatura. Gostava de Noel, Bach, Beethoven e Chopin. Infelizmente fazia concessões a Tchaikovsky em seus momentos mais mundanos. Lia muito, tinha tudo de Eça, Pessoa, Machado, Guimarães Rosa, Euclides da Cunha. Me ensinou a ler.

Sempre teve dois carros ao mesmo tempo, um sedã e um esporte. Dirigia como ninguém, sempre extremamente rápido. Um louco.
Teve um filho fora do casamento. Quando lhe perguntaram com quem o tal filho se parecia respondeu,
- Como todo filho-da-puta se parece com o pai.
Um canalha, um sábio.
Refinado, seus sapatos eram feitos na Itália por um artesão que tinha o molde de seus pés. Seus ternos eram todos ingleses marcados com seu nome, etiquetados em seda com sua própria assinatura. As camisas vinham da Savile Row. Tinha uma coleção imensa de gravatas. Um Patek Philippe para cada ocasião. Tinha modos impecáveis à mesa. Mesmo quando eu já tinha quase trinta anos, já casado, com filhos, ele ainda me corrigia com o olhar detalhes mínimos de etiqueta à mesa. Um gentleman.

Raramente passava o Natal em família. Ele participava de um grupo de voluntários que visitava as prisões levando presentes e comidas natalinas para os detentos.
Quando ele teve um acidente de carro gravíssimo precisou ficar em casa engessado durante semanas, praticamente imobilizado numa cama metálica hospitalar que colocamos em seu quarto. Poucos dias se passaram até começarem as visitas de amigos. Muitas visitas, o dia inteiro. Nossa casa parecia um clube. Em meio a tanta agitação minha mãe lhe pergunta,
- Mas Aguinaldo parece que você só tem amigas, não tens amigos?!
Ele riu.

Em plena Quarta-Feira de Cinzas toca a campainha de nossa casa.
Fui até a porta, olhei pelo visor. Era meu pai. Tanto eu como minha mãe achamos estranho que ele estivesse a tocar a campainha da própria casa. Abri-lhe a porta.
- Aguinaldo você está sem os sapatos! Disse minha mãe.
Ele olhou surpreso para os pés e riu.
- Sorte minha. Onde eu estava teve gente que não achou as próprias calças.
Apaixonada ela lhe perdoava tudo.

Quando minha mãe morreu em minha casa na Alemanha papai e mamãe já estavam separados há alguns anos. Três anos após o divórcio ele tinha se casado com uma mulher quarenta anos mais jovem.
Telefonei para o Brasil, avisei primeiramente às irmãs dela e a um de meus irmãos. Quando estou me preparando para ligar para papai, meu telefone toca. Era ele.
Ele já sabia, uma das irmãs de minha mãe acabara de lhe avisar. Pedi-lhe desculpas por não ter sido eu a lhe transmitir a notícia. Ele chorava, soluçava como uma criança. Balbuciava dizendo que ela tinha sido a mulher mais importante de sua vida. Era verdade, todos sabíamos o quanto ele a respeitava e admirava.

Fui seu filho predileto.
Isso não só marcou meus irmãos até hoje, como também a mim. Quando ele morreu morávamos em cidades diferentes. Soube de sua morte de maneira cruel.
Eu estava numa festa de comemoração pela inauguração de um monumento em homenagem a um tio. Em meio à festa se aproxima de mim uma pessoa de caráter digamos assim maléfico. Ela se aproxima sorridente, puxa conversa, pergunta por meu pai que era seu amigo e me pergunta,
- Há quanto tempo não falas com ele?
- Cerca de umas duas semanas, por quê?
- Ele está morto e enterrado.

Disse esta enormidade e saiu.
Deixou-me só. Eu e a notícia. Eu e a morte de um pai adorado. Fiquei ali no meio da festa com um copo de uísque numa mão e o pai morto na outra. Uma prima, grande amiga, se aproximou,
- Estás branco, estás pálido! O que tens?
- Nada, está tudo bem.
- A cerimonia está terminando. Combinamos, um grupo mais íntimo, ir jantar e continuar a festa. Vamos?
- Claro, vamos sim.

E fomos, umas dez pessoas.
Ficamos num restaurante, uma mesa grande, jantamos, continuamos a beber, conversar, rir, nos divertir. Ninguém percebeu nada em mim. Eu também ria, conversava, me divertia.
Eis que a prima me pergunta,
- O que houve na festa? Notei que uma mulher se aproximou, disse-te algo e saiu. O que houve?
- Deu-me uma notícia. Disse que meu pai estava morto.
Deixei para chorar em casa. Meu pai jamais aceitaria estragar uma festa.