KEN

Sou administrador de empresas. Uma das pessoas de maior capacidade organizacional, uso de métodos, tempos e movimentos que já conheci foi o Ken.
Ken não era administrador era Chef. Trabalhei com ele na cozinha industrial do LATCC – London Air Trafic Control Center. Com uma pequena equipe de três pessoas ela preparava e servia cerca de 750 refeições diárias.

Ken era brilhante. Chegava de manhã dava uma olhada rápida no estoque, ia para o escritório e em minutos fazia os diversos cardápios do dia com o que havia disponível. Café da manhã, almoço e jantar. Chamava a equipe distribuía as tarefas, atualizava o estoque e fazia os pedidos para os fornecedores. Tudo isso sem computador. Depois abria uma garrafa de vinho e partia para o fogão.

Ken era magro, muito alto, quase dois metros, louro de olhos azuis, porte atlético, tinha uns quarenta anos. Ken era acima de tudo muito alegre, divertido, cantava o tempo todo, contava piadas imundas e estava sempre passando a mão nas senhoras do LATCC que naturalmente se faziam de horrorizadas. Ken era adorado por todos. Cozinhava muitíssimo bem, detestava comida inglesa,
- Comida de bárbaros.

O LATCC é uma instalação mista militar e civil que controla o tráfego aéreo de todos os aeroportos de Londres. Como a base é de segurança nacional de vez em quando havia uns alarmes de treinamento tanto de ataque aéreo quanto de ataque nuclear. As sirenes disparavam, os militares apareciam, uma confusão enorme. Todo mundo tinha de pegar seus equipamentos, cumprir procedimentos e correr para os abrigos. Menos Ken. Nem ele nem a equipe.
Os militares ficavam bravos, a administração se aborrecia. Ele respondia,
- Vocês querem que o almoço atrase? Se os krauts ou os commies aparecerem não vai sobrar nada dessa goddamn fuking shit, little bastards.

Ficamos amigos.
Ken sabia que eu adoro Honey Ham e escondeu um enorme no fridge-hall da cozinha. De vez em quando eu ia lá, sorrateiramente como quem rouba, entrava na sala refrigerada, cortava umas fatias enormes, colocava num prato e gratinava com matured cheddar ralado.
Absolutamente divino, eu desgustava de olhos fechados. Como dizia o Eça à respeito dos vinhos de Colares por eles um filho mata um pai. Levei um mês para estraçalhar o Ham. Morro de saudades até hoje.

Anos depois, morando em Sintra, encomendei um destes honey glazed hams artesanais ao butcher de minha amiga Roberta, a Bobbie, lá em Maidenhead. James criava porcos selecionados, alimentava-os com carinho, e depois de abatê-los levava semanas religiosamente preparando e defumando os pernis dianteiros.
Todos os dias eu ia ansioso lá na butchery, como um pai acompanhando a gestação de um filho docemente esperado, saber do estado do processo.
Quando finalmente meu Ham ficou pronto eu o provei trêmulo, desesperadamente, ali mesmo no balcão. James sorria vitorioso, very proud da obra de arte. Minha pobre alma flutuou, meus olhos marejaram. Beijei as mãos abençoadas do James. Tive vontade de rasgar meu passaporte, de cantar God Save The Queen, de encomendar minha última morada nas Chilterns da divina Ilha.
Escondi-o, guardei-o como um tesouro. Durante o dia aproveitava da ausência de minha família ou degustava-o na calada da noite. Escondi-o de minha mulher, soneguei-o aos meus próprios filhos. Menti, pequei. Mas isso já é outra estória.

Voltando ao LATCC.
Ken também sabia que eu era louco por culinária. Um dia ele me chama, eu entro no escritório da cozinha e sento em frente a ele. Ele abre uma gaveta, tira dela um pequeno e surrado livro marrom e me entrega.
- É seu.
- O que é isso?
- Um manual profissional de cozinha  e receitas que minha mãe me deu quando entrei pra faculdade.
- Sorry Ken, mas não posso aceitar.
- You deserve it.
- Mesmo assim não posso.
- Então você, my dear sun of bitch, acha que eu ainda preciso dele?
- Corse not.

Certa vez entrei no banheiro e encontrei o Ken trocando de roupa. O cara tinhas tatuagens da cabeça aos pés. Achei engraçado, perguntei se ele era completamente tatuado. Ele soltou uma gargalhada,
- Yeah! Tenho uma pequena tatuagem que cresce, quer ver?
- No, thanks!
Ken vivia cheio de namoradas, cada uma mais complicada que a outra, todas elas lindas. Um dia estávamos conversando sobre mulheres ele me dizendo que preferia as holandesas, que elas eram as mulheres mais sexies da Europa, mais bonitas até que as dinamarquesas. Concordei que elas eram realmente muito bonitas. Mas ele lamentou,
- Pena que não posso voltar à Holanda.
- Por que?
- Por que assaltei um banco em Amsterdam.
- Você o quê??
- Foi só de brincadeira, com um revolver de plástico, mas a polícia não gostou, me prendeu e carimbou meu passaporte.
Até hoje não sei se essa estória foi mais uma joke da figura.

Apesar de working-class o Ken tinha uma Maserati preta, novinha, caríssima, placa inglesa. Como ele só usava transporte público e só aparecia com a maquina poucas vezes, sempre às sextas-feiras, fiquei curioso. Perguntei por que, se era para sair com as meninas nas baladas.
- Não. Com as grrllsss eu uso outro carro, não quero atrair interesseiras. Só uso a Maserati para visitar minha mãe.
- Sorry?
- É que ela mora longe, no interior, lá no Norte. Eu só vou lá quando tenho dinheiro para pagar as multas.