Eric

Dia dos Pais. Eric meu filho mais velho me liga no sábado marcando para almoçarmos no domingo. Algumas horas mais tarde ele liga de novo, dizendo que em 10 minutos estará chegando em minha casa para me mostrar algo. Ele chega, diz que veio entregar meu presente. Fico muito feliz, ele me dá uma caixa que não consigo adivinhar o que possa conter. Abro e vejo um destes micro equipamentos de som high-tech super portáteis. Agradeço e ele começa a me explicar o funcionamento. O som é fantástico.

Mas esse ainda não era, pelo menos para mim, o verdadeiro presente.
Havia algo mais, e muitas vezes menor. Num minúsculo cartão de memória ele tinha escolhido e gravado mais de 300 músicas. Um trabalho carinhoso que deve ter lhe tomado muito tempo, paciência e dedicação. Era exatamente tudo quanto eu mais gosto de ouvir. Pop dos 60: Credence Clearwater Revival, Bo Didley, Wilson Picket, The Animals, The Human Beinz, Richie Havens, Otis Reading, Cream, Peter, Paul and Mary. Jazz: Art Blakey, Miles Davis, Wes Montgomery, Herbie Hancock, Dave Brubeck, Ella Fitzgerald, Oscar Peterson, Billie Holiday. E mais George Benson, Eric Clapton, Nina Simone, Ray Charles, Frank Sinatra, Jimmy Smith e Simon & Garfunkel.
Literalmente impossível ser mais preciso. Abracei-o longamente, pelo carinho, pelo enorme trabalho e por me conhecer tão bem.

Nunca consegui ter uma relação de pai e filho com o Eric. Para desespero da mãe dele e de suas namoradas fomos sempre muito amigos, essencialmente amigos. Desde o divórcio ele viveu comigo. Nos dez anos entre a separação e meu segundo casamento levei uma vida mais que alegre, namorando non-stop, passeando, viajando, velejando. Eric me acompanhava em quase tudo.
Minhas namoradas adoravam o garoto que era realmente muito bonito. Eric chamava a atenção, com seus cabelos loiros escorridos, uns olhos grandes e lânguidos e um jeito muito carinhoso. Uma mais atrevida me pediu para fazer um igualzinho nela.

Eric morou comigo não apenas no Brasil, mas em Portugal, Inglaterra e Alemanha.
Quando casei pela segunda vez e me mudei para Portugal ao fim de dois meses minha mulher diz que já não aguentava mais me ver chorar de saudade, que trouxesse o Eric logo para morar conosco. Ele veio e passamos grandes momentos em Lisboa e Sintra. Na verdade Eric sempre esteve por perto nos meus piores e melhores momentos.

Eu estava iniciando um pouso de asa delta, sobrevoando a areia, Eric correndo ao lado. Subitamente uma tesoura de vento atinge a asa, ela toma altitude, sobe, estola e cai de ponta. Eric assistindo tudo a metros de distancia. Quebrei duas costelas, esmigalhou-se o osso Radio do braço esquerdo, o braço direito desencaixou-se do ombro, fraturam-se a primeira vértebra lombar na base da coluna e a segunda cervical no pescoço. Eric correndo ao lado da asa assistiu a tudo. Tive de pedir para ele parar de chorar e me ajudar. Naquele dia São Pedro já tinha encerrado os trabalhos e eu fui para um pronto-socorro e para duas cirurgias.

Eric é louco por motos, aviões e carros esporte.
Estávamos na Alemanha e ele chegando do Brasil. Fui buscá-lo no aeroporto que ficava a uns 300 quilômetros de nossa casa com uma surpresa para ele. Eric aparece no desembarque muito excitado contando que por uma incrível coincidência tinha feito a viagem num MD-11 pilotado pelo tio dele, Marco Cerdeira. Voara na cabine com o tio comandante lhe explicando tudo sobre o avião e o voo.
Fomos para o estacionamento, ele me perguntando onde estava o Jaguar. Disse-lhe que tinha vindo em outro carro que estava mais adiante. Fomos andando entre os carros, ele a todo o momento se surpreendendo com as “maquinas” estacionadas. Nisso ele para absolutamente encantado diante de um Porsche Carrera S, ajuste da suspensão e rodas do Turbo. O garoto babava na maquina. Eu sorri e lhe entreguei a chave – Tome, dirija você. Ele não conseguia acreditar e prudentemente me pediu que eu próprio levasse o carro. – Ok, mas na Autobahn você pilota.

Não tive nenhuma prudência: 240 km/h. Nevava uma das maiores nevascas daquele inverno. Tudo absolutamente branco no céu e na estrada. Eric coitado estava tenso, acabara de chegar de uma longa viagem intercontinental e estava agora voando baixo num inferno branco. Semanas depois descobrimos juntos, na prática, a resposta a uma das questões do Porsche. Algumas pessoas dizem que ele sai excessivamente de traseira, outras dizem que ele também solta a dianteira. Alegremente descobrimos que ambas têm razão, é só provocá-lo. E nós o provocamos, e como.

Eric fez uma grande amizade com nosso vizinho Jochen Nevries.
Nevries é caçador esportivo e detêm a concessão legal da demarcação de caça na região da Alemanha onde vivíamos. Ele é a pessoa que libera a compra de armas e munições, emite as autorizações de caça e determina as cotas de animais que os caçadores podem a abater.
Não é minha praia. Eric aprendeu a gostar. Ele e Jochen se dedicavam não apenas às caçadas, mas também à construção dos postos de espera que são pequenos abrigos-observatórios de madeira no alto de um poste onde o caçador fica à espera da presa. Um deles foi batizado com uma placa: Eric.

Eric depois me contava os detalhes fascinantes de uma caçada noturna no inverno. O planalto central europeu imenso, completamente nevado, branco e sem rastros, o frio congelante de 26 graus negativos, uma bebida quente e forte, o silencio profundo de um campo nevado, o céu de um azul escuro quase negro, a claridade da lua cheia se refletindo na neve imensa, plana, prateada. Súbito aparece um javali na pradaria enorme. Segue-se o ruído seco do tiro. O javali é atingido. O javali corre, deixando um rastro vermelho intenso, riscando a imensidão branca. Após algum tempo ele cai. Tudo silencioso, frio, prateado. Uma longa linha vermelha risca o branco.

Hoje Eric é pai de uma linda menina e deu-lhe o nome de Erika.
Fiquei feliz que ele tivesse escolhido para a filha o mesmo nome que escolhi para ele. Mas apesar dele demonstrar que gostou da minha escolha ao mesmo tempo parece insinuar que eu não soube grafar o nome corretamente.
Obrigado Fofão pelo maravilhoso Dia dos Pais.