Boa Forma em Boa Viagem

Tenho um grande amigo Beto Faria, atual Secretário da Fazenda de Olinda. Beto é um dos homens mais calmos e conciliadores que conheço. Já o vi lidar com greves de funcionários públicos, negociar demandas trabalhistas delirantes e sanar finanças impossíveis. O cara tem um jogo de cintura de fazer inveja a dançarina de dança do ventre.

Beto tem a calma e o autocontrole típicos do mergulhador que é. Mas apesar do bom humor ele quase perdeu a paciência. Beto foi ao super-mercado prosaicamente fazer umas pequenas compras num desses walmarts da vida. Em Boa Viagem, Recife. Até aí nada de mais.
Como estava comprando poucos produtos ele naturalmente foi para fila das pequenas compras. Apenas para descobrir que na fila das pequenas compras havia carrinhos gigantescos com compras para meses. Com sua calma natural ele muda de fila e vai para uma das filas normais. Sem problema, sem stress.

Ele fica logo atrás de uma senhora com um carrinho nem tão volumoso assim. Em cima do carrinho, sentado sobre as compras estava perigosamente equilibrado um menino, provavelmente filho da tal senhora. O moleque fazia todos os malabarismos necessários para se despencar no chão, mas nem com toda sua esperteza ele conseguia se deixar atrair pela Gravidade. A Lei não se aplicava àquela criatura. A fila não andava, o moleque aprontando.
A essa altura Beto já estava intimamente torcendo que o diabinho se esborrachasse no chão. Para apressar a desgraça do moleque ele chegou até a dar umas pequenas ajudas, uns toques leves no carrinho. Mas nada, o moleque era protegido por alguma entidade maléfica.

A fila não andava direito, o menino barbarizava, a mulher nem se abalava. A mulher era gorda. Muito gorda, imensa. Dessas que o barateamento dos carbohidratos está produzindo aos milhares.
Gorda e tranqüila. Tão tranqüila que nem o barulho do supermercado, nem o atraso da fila nem muito menos as loucuras que o menino aprontava movimentavam sua enorme massa adiposa. Ela estava extremamente absorta em sua leitura. Com muita atenção ela lia, muito apropriadamente, o último exemplar da revista Boa Forma.

Quem já estava quase perdendo a boa forma era Beto. Mas eis que o menino apronta uma ótima, consegue realizar uma tremenda façanha. Lá do alto da montanha de compras, se equilibrando entre biscoitos e macarrões, pesquisando entre sabonetes e manteigas o pestinha descobre no fundo do carrinho um brinquedo. Ou pelo menos o que lhe parecia ser um brinquedo.
A demoníaca figura estava agora empunhando um destes detergentes que têm coronha, gatilho e bico disparador. O moleque agora estava armado! E toca a disparar.
Beto pacientemente se desviava dos disparos. E a lipo-criatura nada, não se abalava concentrada em sua boa forma. Finalmente acabou acontecendo. O moleque disparou um jato de detergente no próprio olho. O inferno agora estava completo.

Além da tortura das filas, das ansiedades da espera, do empurra-empurra, do sofrimento em meio ao caos, agora também havia os gritos horrendos do infame.
A mulher não teve outro jeito senão deixar de lado a Boa Forma, perder a própria e tentar domar o moleque estrebuchante. E Beto atrás, esperando, ouvindo, suportando. Mas como não há mal que sempre dure a macro-adiposidade acabou sendo atendida pelo caixa. Quando ela finalmente já se preparava para desaparecer, nota que na sua conta havia a substancial, a inaceitável diferença de um real e vinte e cinco centavos.
Para tudo. Chama o gerente, chama o fiscal, refaz a conta quilométrica.

Neste momento Beto reviu mentalmente toda sua vida. Corajosamente revisou cada detalhe desde a infância. Analisou a adolescência, honestamente lembrou de tudo e concluiu que com certeza não havia batido na própria mãe. Beto respirou fundo. Respirou com aquele fôlego enorme de mergulhador e encarou o desafio. Esperou pacientemente que finalmente a contenda se resolvesse. Tudo terminado, a dupla insana se foi, se perdendo nas ondas da multidão.
Finalmente chegara sua vez. Beto começa a tirar suas duas ou três compras do carrinho e a coloca-las no balcão. Sorri para a moça do caixa, aliviado. Ela olha para ele com um ar grave de veredito final.
- O caixa quebrou, está encerrado.

Neste momento Beto teve uma revelação.
Ele começou a ter uma verdadeira experiencia religiosa. Ele que já tivera algumas dúvidas na existência de deus agora tinha certeza da existência do diabo. Ou pelo menos, para ficar no regional, na do Curupira, na do Saci que se divertem fazendo confusão na vida dos outros.
Anos de luta política não podiam ter sido em vão. Neste momento, paciência e determinação lhe foram mais úteis que na época do regime militar. Beto esperou que tudo voltasse à normalidade. O caixa voltou a funcionar, as compras foram passando, a moça ia registrando.

Mas eis que quando ele olha aliviado para o empacotamento de suas compras descobre que o supermercado tem uma orientação politicamente correta.
O empacotador era deficiente físico. Só tinha um braço.