Annabi um árabe misterioso

Sintra é um desses lugares cheio de estrangeiros que quando um dia a conheceram, se encantaram e se mudaram para cá. A maioria são ingleses, alemães e suíços.
Eu era amigo de um desses ingleses. John era um diplomata aposentado. Morava numa casa charmosíssima e tinha uma pequena gráfica de serviços rápidos e encadernações que eu usava freqüentemente para meus trabalhos.

Annabi era um árabe com quem eu tinha contatos profissionais. Filho de um matemático e de uma artista plástica, sobrinho de ministro, neto de banqueiros de uma família milionária e influente. Ele me contactara em Túnis, interessado em contratar estudos de viabilidade econômica de projetos industriais no norte da África.
Jovem, ele estava considerando oportunidades de investimentos apoiados pela Comunidade Européia para o Magreb. Ele queria construir sua própria carreira com apoio da família influente. Tivemos vários encontros de trabalho e o último deles nós marcamos em Londres, um ponto intermediário para nós dois. Ficamos no mesmo hotel por dois dias analisando possibilidades e projetos.

Pouco depois de voltar de Londres estive na gráfica de meu amigo inglês.
Fui encomendar a encadernação de um projeto em que estava trabalhando. Depois de tomar nota do serviço John me pergunta:
- Como foi a viagem a Londres?
Fiquei surpreso porque não me lembrava de ter comentado sobre a viagem com ele.
- Foi ótima, bastante produtiva e ainda deu para fazer umas compras.
- E o árabe, também gostou?
Aí fiquei realmente muito surpreso.
- Como você sabe disso?
John riu discretamente.
- Ivan eu sou aposentado do serviço diplomático.
- Sim, eu sei mas e daí?
- O árabe já tivera o pedido de visto para Londres negado. Quando você lhe passou um fax de sua empresa convidando e marcando o encontro em Londres, ele voltou ao consulado e contornou o problema. Eu fui acionado por morar em Sintra. O ministério me pediu informações sobre você, qual era seu trabalho e sua empresa. Como eu tenho lhe feito todas estas encadernações foi fácil responder.

- John você é um informante inglês?
- Oh no, please, informante é muito rude, deselegante!
- Então vamos mudar a forma da pergunta, você é colaborador do MI6?
John abriu um sorriso maroto.
- Oh no, 'course not, spy is too charming. Na verdade todo diplomata faz um pouco deste tipo de atividade. E além disso my dear friend, com esta aposentadoria que recebo é preciso complementa-la com algum income extra.
Pronto, ali na minha frente acabava de se desfazer todo o charme do MI6. Um senhor simpático, bonachão, meu vizinho em Sintra, complementando a aposentadoria não tinha nada a ver com 007.
- Bem, deve ser bem interessante este seu bond-work.
- Muitíssimo menos do que você possa imaginar, nada de mulheres, carros, iates, lutas e tiros. Na verdade is very boring e burocrático.
- Sim mas afinal o que há de errado com o árabe?
- Nós o estamos observando.
- Vocês também me seguiram?
- Digamos assim, protegendo. Você não achou estranho que ele preferisse um encontro em Londres ao invés de Túnis?  Nem chamou sua atenção o fato de ele ter ficado lá por mais alguns dias depois que você voltou?
- Ele me disse que estava esperando uma pequena peça da Ferrari.
- E você sabe verdadeiramente a fonte dos rendimentos dele?
- Acredito que seja da família que é muito rica. O cara é perigoso então?
- Digamos que há pessoas melhores para se trabalhar. Aliás, eu definitivamente não lhe entusiasmaria a dar continuidade a esta relação.
- Mas qual é exatamente a atividade dele?
- Melhor não saber.
- Thanks, thanks a lot, John. See you.

Comecei a juntar pedacinhos da história. O Annabi certa vez quase se descontrolara ao falar dos EUA e disse que ainda veríamos a queda do império americano. 
Uma outra vez, numa tarde almoçando numa enseada belíssima próxima a Cartage, ele me mostrou umas casas nas encostas e apontou para o mar:
- Foi por ali que chegaram os Mirage de Israel bombardeando a casa de Arafat. Nós estávamos aqui neste restaurante e vimos tudo, nos jogamos no chão, minha mãe gritava e meu pai tentava nos acalmar. Eu e minha irmã éramos pequenos e chorávamos assustados. Vimos os caças chegarem, invadindo nosso espaço aéreo, disparando as metralhadoras, despejando mísseis e bombas. Era um estrondo ensurdecedor de disparos, motores e explosões. Depois os judeus arremeteram os caças e voltaram por onde vieram.

Na época esse bombardeio fora um ato terrível pois Israel invadiu o espaço aéreo de um outro Estado para bombardear um bairro civil de um país com quem não estava em guerra. Foi uma atitude brutal que chocou o mundo e apesar de Arafat não estar em casa outras pessoas morreram.
A Tunísia tinha sido o único país árabe a aceitar a OLP - Organização de Libertação da Palestina - em seu território. Arafat morava nos arredores de Túnis de onde comandava suas operações, fortemente protegido pelo Al Fatah, ele e seus homens tinham imunidade no país e de lá partiam para suas ações.
O governo de Bourguiba e de Ben Ali não tinham o menor controle sobre eles.
Annabi odiava os EUA, Israel, os judeus e a Inglaterra que segundo ele não era nada mais que um porta-aviões americano.

Comigo ele teve algumas atitudes estranhas.
Um dia me convidou para ir até as montanhas da Argélia conhecer uma reserva ecológica de caça. A viagem foi deslumbrante através do litoral de um Mediterrâneo quase intocado. Chegamos na reserva e paramos em um restaurante que ele dizia ter uma carne excelente de javali, caçado ali mesmo. Achei estranho um muslim elogiar carne de javali. Pedimos o assado. Estava delicioso, a carne firme, um pouco adocicada e menos gorda que a de porco. Meio sem graça lhe perguntei porque ele, um muçulmano, se permitia comer carne de javali. Ele respondeu que era um muçulmano liberal em que eu podia confiar.
Annabi levava uma vida muito acima do que o pequeno negócio que tinha poderia lhe permitir. Não tinha cartão de crédito apesar de ser sobrinho de banqueiro. Também não era comum o UK negar um visto de turista a tunisinos ricos. Muito menos ser alvo de interesse do MI6.

Até hoje continuo sem fazer a menor idéia de que real utilidade eu tive para ele ou de qual era seu verdadeiro negócio.