As Cavernas do Sahara

Habib Bourguiba proclamou a Tunísia independente da França em 1956. Fundou uma república secular muito liberal para os padrões de uma nação árabe de maioria islâmica. O país se modernizou, ocidentalizou-se. Bourguiba impôs liberdade religiosa, igualdade para as mulheres, incentivou o turismo, acelerou economia. Investiu em educação para tirar o país do atraso colonial.

Mustapha Grissi nasceu uns dez anos depois de Bourguiba chegar ao poder.
Nasceu e morava com a família nas cavernas de Matmata, escavadas abaixo do solo do deserto do Sahara. Matmata é uma rede subterrânea como túneis de cupins que se interligam num labirinto onde vivem famílias inteiras há séculos. A estrutura social das tribos é rígida, patriarcal.
Não se ensina as mulheres a falar, elas raramente saem dos túneis, não dirigem o olhar a nenhum homem, só ao pai. Depois de casadas passam a olhar apenas ao marido.

Grissi é um grande amigo meu.
Vivendo nos túneis de Matmata ele cursou o ensino básico até que representantes do Estado vieram lhe buscar. Excelente aluno ele foi separado da família para estudar na capital. Destacou-se desde os primeiros anos até chegar o momento do curso universitário. Pelo excelente desempenho o Estado mandou-o para a École Polytechnique, em Paris, que desde 1794 forma a elite francesa. De lá saíram alguns prêmio Nobel.
Grissi passou nas provas de admissão, cursou a escola, formou-se em Engenharia, foi laureado como melhor aluno. O menino árabe tirado das cavernas do Sahara foi o aluno mais brilhante em Paris.
Choveram ofertas de trabalho. Casado com Martine, uma francesa, Grissi respondia que só aceitaria trabalhar na Tunísia,
- Vou voltar para dar o retorno por tudo que meu país investiu em mim.
Grissi voltou para a Tunísia com sua Martine. Trabalhou em funções muito aquém de sua formação e capacidade até que uma indústria francesa instalou uma fábrica de eletrônicos em Túnis e lhe entregou a direção.

Grissi tentava tirar o restante da família dos túneis de Matmata, mas enfrentava forte resistência do pai. Só havia conseguido há alguns anos trazer o irmão Ámor para estudar e morar com ele em Túnis.
Certa noite estávamos Grissi, Ámor e eu na casa deles, próxima de Cartago, bebendo e conversando enquanto Martine nos preparava mais um de seus excelentes jantares. Grissi me conta,
- Tenho uma grande novidade. Consegui trazer minha irmã Bouchra para morar conosco.
Fiquei surpreso, alegre muito alegre. Era uma vitória para ele que o pai tivesse permitido a filha sair do ambiente patriarcal.
- Bouchra tem 15 anos e só agora está aprendendo a falar.
O choque cultural era enorme. Do deserto para uma cidade grande, das cavernas para uma casa de hábitos franceses. Grissi conta as dificuldades de adaptação de Bouchra. O máximo que ela tinha aceitado fôra frequentar uma escola de costura numa pequena turma de mulheres,
- Pelo menos assim ela vai aprendendo a falar francês.

Grissi tinha de leva-la e trazê-la todos os dias.
Bouchra só saia de casa com ele, agora o substituto do pai. Em casa ela não saía do quarto nem para se sentar à mesa nas refeições. Da casa não saía nunca a não ser para a escola.
Fiquei curioso de conhecê-la. Ela estava no quarto no andar de cima, mas certamente não iria descer, principalmente havendo outro homem na sala.
Martine chega da cozinha,
- J'ai une surprise pour vous.
- Para mim? Martine o que estás tramando? Ela ri um sorriso enorme,
- Une cassete de musique. Gravei uma fita só com música brasileira para esta noite.
- A gentileza de vocês não tem limites!

Fiquei imaginando que tipo de música Martine teria escolhido. Que tipo de música brasileira eu ia ouvir ali na Tunísia. Preparei-me para ouvir qualquer coisa e para gostar, por pior que fosse. Martine colocou o volume muito alto, a música encheu a sala. Levei um choque de alta voltagem. Som de tambores, a marcação inconfundível.
Longe de casa, num país árabe, há tantos anos sem ver minha querida Salvador, subitamente os tambores do Olodum estrondaram alto na sala. Engoli em seco, tomei um gole de vinho, segurei o soluço.
- Vous connaissez? Vous aimez?
- Se conheço, se gosto? Eu adoro! Martine, você não poderia ter escolhido melhor. És uma bruxa! Esse grupo o Olodum - deus dos deuses - é da cidade onde eu morava.
Martine, Grissi e Ámor riram espantados de tamanha coincidência.

Em seguida ao Olodum, vieram muitas músicas, todas da Bahia, sabe-se lá por que. De repente se ouve a voz de Gal Costa,
- São Salvador, Bahia de São Salvador...
Foi demais, eles notaram. Levantaram, me deram um abraço enorme. Um tunisino, uma francesa e um brasileiro unidos por Caymmi num abraço. A voz doce de Gal,
- São Salvador, Bahia de São Salvador, a terra do Nosso Senhor, pedaço de terra que é meu...
Traduzi, até eles choraram.

Vieram outras, todas de carnaval. Eles pedem para lhes ensinar a dançar. Daí a pouco estávamos todos pulando, dançando, cantando de mãos dadas, fazendo roda. Segurando na cintura uns dos outros, fazendo trenzinho. Um carnaval.
Subitamente Grissi para. Olha para o alto da escada. Todos paramos, seguimos seu olhar. Tivemos o mesmo choque. Lá estava Bouchra. Parada no alto da escada, meio escondida, observando.

Uma menina morena da cor árabe, alta, cabelos longos levemente ondulados, rosto muito bonito, olhos expressivos, um brilho de curiosidade no olhar.
Grissi desliga a música, sobe a escada, conversa, pede para ela descer. Ela nega, Grissi insiste, ela reluta. Ele toma sua mão, ele começa a descer. Ela acompanha. Bouchra começa a descer bem devagar.
Fico observando sem olha-la para não constrangê-la. Ámor e Martine também esperam parados, surpresos, no meio da sala.

Algo extraordinário estava acontecendo.
As músicas, nossa alegria, tinham tirado a menina do quarto. Enquanto Bouchra e Grissi descem a escada Martine recoloca a fita no princípio. Os tambores do Olodum voltam a tocar. Ela toma minhas mãos e as de Ámor, recomeçamos a dançar. Bouchra fica olhando. Grissi a traz pelas mãos, se junta a nós, começa a dançar.
De cabeça baixa, a menina começa a se mexer lentamente. Movimenta-se devagar, depois acelera os movimentos, tenta nos acompanhar.
Em pouco tempo a menina vinda das cavernas do deserto, que vivia trancada num quarto, sem olhar nos olhos de ninguém já estava dançando, mexendo os quadris. Sorria discretamente, depois ria alegremente, iluminada, feliz.

Bouchra descontraía. Bouchra nos acompanhava. Bouchra fazia trenzinho. Segurava nossa cintura, segurávamos na cintura dela. Ela ria, dançava.
Bouchra renascia, ressuscitava ao som do Olodum.