Schlaf Gut

Vahine foi uma criança especial, engraçada, muito falante, curiosa. Na verdade todas as crianças são assim, os pais é que acham as suas especiais. Ela logo cedo ganhou o apelido de Minhoca. Quase sempre no meio da noite ela vinha engatinhando do quarto dela para o nosso enrolada no edredom. Parecia mesmo uma minhoca. Não dizia nada, espalhava o edredom no chão e ali ficava.

Ainda bebê, nós a transportávamos dentro de uma alcofa. Uma cesta, um moisés, sei lá quais os nomes que se dão aquela cesta horizontal, de fundo rígido, com tampa parcial de tecido e zíper, com alças laterais para transporte, onde se coloca o bebê para dormir. Chamemos aqui de alcofa, como fazem os portugueses. Eu segurava por uma alça, Sandra pela outra e assim a Vahine nos acompanhava para todo lado.

Um belo dia descendo as escadarias da estação do metrô de Arroios, em Lisboa, uma das alças se desprendeu, nos assustamos e soltamos a alcofa. Foi a primeira experiência de cinema de quem um dia se dedicaria a ele. Como na cena d’O Encouraçado Potemkin a alcofa desceu, surfou toda a escadaria do metrô. Assistimos gelados.
Corremos, alcançamos a alcofa, abrimos a tampa, Vahine parecia bem. Subimos as escadarias, saímos da estação à procura de uma clínica, de um médico. Por sorte havia uma bem em frente, ela foi examinada, estava bem.

Já maior, voltando da casa da ama onde ela passava o dia lhe perguntei,
- Está tudo bem? Como foi seu dia?
- Tudo bem pai, o dia foi bom.
- Portastes-te bem?
- Não pai. Portei-me muito mal.
- Sério? O que houve?
- Fiz imensas pirraças.
- Mas por quê?
- As minhocas são assim mesmo. 

Sandra tinha o hábito do Schlaf Gut. 
Quando colocávamos a Vahine para dormir ela respondia “depois quando fores dormir não te esqueças de vires dar os meus beijinhos, ou muitos ou poucos, eu prefiro muitos. Boa noite, schlaf gut”.
Ficávamos espantados por que ela própria havia criado isso. A resposta se tornou um hábito carinhoso que ela sempre repetia antes de dormir. Com o tempo ela perguntou como era boa noite em inglês e agregou. Algum tempo depois ela perguntou como era em francês, depois em espanhol, depois em italiano, depois em holandês.
Com o tempo a coisa já estava enorme, “depois quando fores dormir não te esqueças de vires dar os meus beijinhos, ou muitos ou poucos, eu prefiro muitos. Boa noite, schlaf gut, good night, bonne nuit, buenas noches, buonanotte, goedenacht”. 
E sempre perguntava,
- Não sabes mais outra língua?