Quando nos tiram a Razão.

Próximo a minha casa há na esquina um morador de rua.
Ele passa a noite inteira em pé, em frente a uma espécie de corrimão que protege a esquina. Uma armação metálica simples de três longarinas em forma de “u” invertido com ângulos retos, as duas pernas verticais fincadas no solo e a terceira paralela à calçada. Esta terceira não é fixa e gira em torno de si mesma.

O homem que certamente é limítrofe fica horas a fio parado em frente à haste móvel, olhando-a e girando-a ininterruptamente. Com o movimento a haste emite um rangido constante. O que se passará em sua mente?
Durante três anos estudei Medicina.
Neste período fui interno voluntário em uma maternidade e em um hospital psiquiátrico. Da maternidade, onde fiz centenas de partos, agreguei conhecimentos que me ajudaram a fazer o parto de dois filhos. O primeiro por circunstâncias o segundo por exigência da mãe.

Do período no hospital psiquiátrico guardo lembranças inquietantes, reveladoras. Lá me defrontei com a devastadora condição que os gregos sabiamente diziam que quando os deuses querem nos amaldiçoar nos tiram a Razão.
O inquietante é nos ver nos internos.
Não há praticamente nada no comportamento deles diferente do nosso. A diferença é na intensidade, na quantidade não na qualidade. A ira, o medo, a inquietação, a dúvida, a estranheza, os desejos, os afetos, a compulsão, a indecisão é a mesma. Varia o tom, a quantidade, somos absolutamente iguais, só nos separa uma leve fronteira.

O que se passará na mente deste fronteiriço, talvez bem mais que isso, o que se passará na cabeça deste irmão da ansiedade do ser e do estar?
À noite quando vou dormir posso ouvir ao longe o rangido da haste a girar me lembrando que o homem está lá. Parado, olhando para a haste, girando-a sem fim.
Girando-a inutilmente, talvez mostrando uma inutilidade existencial que só ele compreenda.