Europa, China, Rússia e o Terremoto de Lisboa

Há exatos dois anos o The Economist publicou em Novembro de 2009 um editorial sobre um novo equilíbrio geopolítico e militar na Europa e a posição da Rússia no equilíbrio de poder com os EUA e a UE no continente europeu. 
A posição da Economist Intelligence Unit de Londres era de alinhamento com os americanos como ultima instância de recurso e proteção. 
A História do século vinte ilustra bem essa situação recorrente.
O ensaio da EIU discutia a inquietação da Rússia com sua crescente perda de influencia, desde o fim do império soviético, no Leste Europeu.

A preocupação russa era com o expansionismo militar e econômico sobre suas antigas áreas de influência: o alargamento da OTAN e a expansão comercial e política da UE.
Militarmente o Kremlin insistia numa "nova arquitetura de segurança Européia" visando conter o avanço da OTAN. A guerra de agosto de 2008 na Geórgia, quatro meses depois da cimeira da OTAN em Bucarest foi um alerta do Kremlin ao que ele considerou como "grave provocação".
Comercial e politicamente para Moscou a UE foi longe demais ao estabelecer uma "parceria oriental" com a Armênia, Azerbaijão, Bielorrússia, Geórgia, Moldávia e Ucrânia.

Faltando apenas algumas semanas para os vinte anos da derrocada da URSS e da re-arrumação do tabuleiro europeu é preciso reavaliar esta situação.
O assunto é atualíssimo e assume maior importância face à crise atual da União Européia.
Hoje praticamente todos os componentes do Pacto de Varsóvia estão na OTAN e todos eles já estão ou pretendem estar no guarda-chuva da UE. Países da Bacia do Mar Negro e do Cáucaso inclusive.
Há dois anos atrás os países da Europa Oriental estavam vivendo nervosamente entre uma Alemanha quase neutra, uma Rússia revisionista e um uma América ausente. Estavam à procura de um parceiro poderoso que tivesse fortes interesses na região.

O fator desestabilizador no equilíbrio de forças já naquela época, e hoje mais que nunca, não é nem a Rússia, nem os EUA, nem a própria UE.
É a China.
Os chineses têm motivos de sobra para implantar uma presença forte na UE e na Europa do Leste. Motivos que vão desde o comércio à geopolítica. O que dá praticamente no mesmo.
A China já manifestou interesse em comprar, e já comprou, diversas empresas do continente além de deter uma parte da dívida soberana da Espanha, Grécia e Portugal.

Em Novembro de 2010 em visita a Lisboa o premier chinês demonstrou intenções de comprar o total da dívida do país. 
Portugal apóia o fim do embargo de venda de armas à China e atualmente os chineses se preparam para as privatizações que o estado português vai realizar.
No balcão poderão estar empresas de eletricidade, petroquímica, refino e distribuição de petróleo e combustíveis, financeiras, aviação, aeroportos, radio, televisão, correios, banca, estradas e transporte ferroviário.
A China vai às compras, e com os bolsos cheios vai encontrar um vendedor de bolsos vazios.

A aliança da China com Chipre passou quase despercebida.
A concessão por 35 anos do porto de Pireu na Grécia também.
Os chineses planejam controlar uma rede européia de portos, centros de distribuição e transportes ferroviários fechando o circuito comercial e logístico da venda e distribuição de sua produção.
Portos gregos e italianos, estradas que ligam o leste europeu à Alemanha e à Turquia estão no carrinho de compras chinês.

Para a China investir uma parte dos bilhões de euros de suas reservas em investimentos na Europa é muito mais vantajoso do que aplica-los nos títulos de baixa remuneração do Tesouro dos Estados Unidos. Além de ajudar a diminuir a pressão de Bruxelas para elevar o valor do Yuan.
Mas o apetite da China por ativos na Ucrânia é uma provocação absolutamente inaceitável para Moscou.

Mudança de cenário.
A diplomacia americana, apesar de tardiamente, está atenta à mais significativa mudança do pendulo geo-político-econômico global.
Com inexplicável atraso apenas nesta semana, no dia 16 de Novembro de 2011, os EUA e seu presidente disseram ao vivo, in loco e com todas as letras que seu foco prioritário é o eixo Ásia-Pacífico.
Um reconhecimento tardio para quem tem na China o maior detentor de títulos do tesouro americano.

A Austrália concordou em receber aviões de guerra e 2.500 efetivos militares americanos numa base no norte do país. Falando ao parlamento australiano o presidente americano foi direto ao ponto:  
- Os Estados Unidos são um poder do Pacífico e estamos aqui para ficar. Sem restrições de orçamento.
Nem MacArthur diria melhor. 
Há muito que o motor do desenvolvimento econômico do planeta está na Ásia. Só mesmo a arrogância racial pode explicar tamanha cegueira política.

A situação da Europa ficou ainda mais crítica depois de quatro fatos ocorridos na ultimas semanas.
1 O agravamento da crise na zona do Euro e o aumento dos juros no refinanciamento das dívidas soberanas.
2 A queda sucessiva de governos na Grécia, Itália e Espanha.
3 A recusa do Brasil, da Rússia e da China em participar de um resgate financeiro à Europa.
4 A sinalização dos EUA de que suas prioridades principais migraram do Atlântico para o Pacífico. 

Para a Rússia é difícil tirar proveito dessa nova situação e retomar sua importância no continente europeu.
Pseudocapitalista  e pseudodemocrática a Rússia continua com estruturas de poder não muito diferentes da época da URSS.
Governada por um czar, desta vez azul, proveniente da KGB, a mesma e onipresente agencia de inteligência que forneceu a maioria dos dirigentes do império vermelho. Liderando um mesmo partido único com os mesmos métodos soviéticos.
A Rússia mudou politicamente quase nada e continua como sempre tremendamente dependente do preço do petróleo, gás e de outras commodities. E com um raciocínio político-estratégico soviético. 
O estado russo é uma farsa democrática, militarmente poderoso, governado autoritariamente por uma elite saudosa do império onde cresceu e se formou.

A Rússia vende mais da metade do que produz para a UE. A Europa representa mais de dois terços do investimento estrangeiro no país. As duas economias estão intimamente ligadas.
Para o grande urso o cenário geopolítico mudou uma vez mais em vinte anos e parte do futuro europeu está nas mãos e nos humores de dois de seus velhos rivais.

A Europa Oriental pode se transformar numa plataforma da China. Uma base de fabricação de baixo custo para aumentar a quota de mercado chinesa dentro da UE.
Isso evitaria pressões protecionistas, altos custos de transporte e outros impedimentos para satisfazer a necessidade européia de produtos baratos que atualmente vêm da própria China.
Os chineses tem vontade, interesse e capital de sobra para isso. Esta é a saída lógica e natural  para seu expansionismo comercial. Eles estão prontos para comprar mais e maiores ativos de empresas e mais passivos de estados europeus. 

Investimento e presença chinesa podem colocar a Europa do Leste e alguns estados periféricos de volta no mapa. Mas admitir o afastamento da influencia russa no leste europeu para dar lugar à da China parece um cenário perigoso.
Deixar a Rússia de fora da equação européia é suicídio.
Os Estados Unidos, o suposto velho e bom amigo dos europeus, pouco está se importando com isso, pelo menos no curto prazo.

A América sempre foi muito pragmática e agora a Ásia é sua prioridade. Os Estados Unidos não têm amigos, tem interesses,  já dizia o secretario de estado John Foster Dulles em 1950.
Melhor que a China compre e assuma o que bem quiser e entender. Para os EUA enfraquecer a posição russa na Europa é uma vantagem estratégica.
Mas convém não provocar ainda mais a ex-superpotência, armada até os dentes.

É ingenuidade achar que a Rússia e a União Européia tenham os mesmos valores. Mas elas podem e devem juntas resolver seus problemas como eles realmente o são:  problemas europeus. Seus problemas.
De maneira soberana, mas sem miopia política-econômica. De forma realista, mas sem os raciocínios geopolíticos do passado.
A Velha Senhora precisa pensar rápido e se reinventar. A oportunidade está batendo à porta.

Vinte anos depois da queda da URSS vale lembrar que em boa medida a falência do bloco esteve ligada ao endividamento crescente de suas economias com bancos ocidentais.
A Polônia era a mais endividada, viciada na mais perigosa das drogas como disse um economista polonês. Nos seis anos anteriores a decretação da Lei Marcial em 1983 a dívida cresceu quinze vezes, chegando a 66 bilhões de dólares.
A Alemanha Oriental no começo da década de 1980 usava 80% de sua receita para pagar empréstimos.
Na Hungria dois terços do orçamento do país estava comprometido com o pagamento apenas de juros.

Curiosamente também em Novembro aconteceu, em 1775, o Terremoto de Lisboa.
O terremoto destruiu o porto da cidade, 85% das casas e construções e bloqueou de destroços dois terços de todas as ruas.
Imediatamente depois seguiu-se um maremoto e dois tsunamis imensos arrasaram o que sobrou do porto, afundaram e arrastaram navios e construções Lisboa adentro. A imensa massa de água invadiu a cidade.
Depois que as águas baixaram começou um incêndio que durou seis dias.
Ao final do incêndio a Peste devastou a população.

Depois de tamanho apocalipse o rei D. José I perguntou ao Marquês de Alorna o que se devia fazer.
- Sepultar os mortos, cuidar dos vivos, fechar os portos.
O Marquês de Pombal entendeu, aproveitou a grande oportunidade e reconstruiu Lisboa com avenidas largas, passeios calçados, saneamento básico e planejamento urbano.
Lisboa se tornou a mais moderna cidade européia da época.

Repetindo: investimento do estado em infraestrutura e benefícios sociais, gerando emprego e renda. Nada de políticas de austeridade econômica, mesmo porque não havia como ser austero.

A Europa está vivendo um terremoto financeiro, social e político que só a acomodação das populações aliada à falta de coragem dos políticos impedem de ver.
O que fazer?
- Sepultar a dívida, cuidar dos desempregados, fechar a farra de importações baratas e crédito irresponsável.
Thanks Alorna.