Anos atrás eu estava velejando o Vahine na Baía de Todos os Santos indo para Ilha de Maré.
Quando cheguei e terminei de ancorar vi que a placa de fixação do estai de popa do barco estava para se partir. Não ia dar para voltar velejando para Salvador pois o risco de partir a placa e perder o mastro era certo. O problema é que em Maré não havia como fazer o reparo.
Resumindo o veleiro teria de ficar ancorado na ilha. No fim de semana seguinte eu traria a peça e voltaria para Salvador .
Mas como voltar para Salvador? Perguntei ao pessoal da ilha e eles disseram,
– Pegue uma lanchinha até Inema, lá pegue uma kombi até Paripe e em Paripe pegue um taxi pra Salvador. Ou então lá em Paripe pegue o trem até a Calçada e de lá pegue um ônibus.
O jeito foi encarar a maratona. Mas deu tudo certo e no fim de semana seguinte eu estava velejando novamente.
Anos depois disso mudei do Brasil.
E mais alguns anos ainda, cheio de saudades, voltei para Salvador.
Logo que cheguei olhando para as águas da baía de Todos os Santos lembrei do que tinha me acontecido. Resolvi fazer o caminho inverso daquele que tinha feito naquela época e fui passear em Ilha de Maré. Fui para Paripe, de lá para Inema e peguei a lanchinha.
Estas lanchas de madeira são o único meio, muito precário, de transporte do povo simples que mora ou passeia na Ilha de Maré.
Paguei os R$ 3,00 (€ 1,20) e embarquei. A lancha não tinha mais que oito metros, estava cheia de gente e a borda do barco quase roçava na água.
Por cima de nós o céu azul da Bahia, daquele tom que só existe em Salvador, estava divino.
Embaixo dele enchendo a lancha estava este povo moreno, alegre, feliz, o patrimônio imaterial desta terra abençoada.
A lancha nem tinha saído quando já começou o samba puxado por uma rapaziada. Eles improvisavam nos versos brincando com cada passageiro, com cada tripulante. Em pouco tempo a lancha toda cantava, batia palmas e já tinha gente em pé se requebrando.
Motor ligado a lancha apontou para Maré levando toda aquela gente sambando, cantando. Flutuando pelas águas de Iemanjá, tão intensas em verde quanto o céu em azul.
E eu ali no meio. Não estava como antes na escuna de meu pai, nem em lancha de amigos, nem num veleiro de competição, nem muito menos no meu Vahine.
Estava numa lanchinha precária cercado de gente simples.
Mas meu Senhor do Bonfim como eu estava feliz!
Batendo palmas, cantando, rindo à tôa, me sentindo parte de tudo aquilo. De tão feliz eu nem sabia se olhava para o azul, para o verde, para o marrom das pessoas ou para o branco dos sorrisos. Preferi olhar para dentro e me encher de alegria.
A lanchinha subindo e descendo no mar jogando para lá e para cá só melhorava o equilíbrio de quem sambava. Cada pequena onda desatava uma gargalhada geral e o samba ficava mais alto, as cores mais fortes, a cerveja mais gelada, meus olhos mais úmidos.
Chegamos.
Não há atracação para os barcos que chegam, não há cais, não há nenhum recurso. A lanchinha, como todas as outras que já estão por lá, avança para a praia até a proa encostar na areia.
Os pais pulam primeiro e carregam os filhos no pescoço, os namorados carregam as namoradas no colo e uns rapazes da ilha aparecem para carregar no colo quem vai lhes dar um trocado.
O resto de nós tiramos a roupa que não queríamos molhar e saltamos direto para a água que afinal só estava pelos joelhos. Quem conhece já vai preparado, vai de bermuda, levanta a calça, levanta a saia, uma delícia.
Na praia as barracas nos esperam. Há bebidas, peixe frito e moquecas, baianas de acarajé e ambulantes completam os sabores.
Sentei, pedi uma cerveja e fiquei de frente para o mar.
A baía estava toda ali na minha frente. A Ilha de Itaparica, a Ilha dos Frades e Salvador lá ao longe. Por trás o casario, o coqueiral, o morro e a mata.
Tudo envolto em azul e verde. Tudo envolto numa brisa macia. Na areia a beleza cor de canela da minha gente se exibindo languidamente para lá e para cá. Um vai-e-vem de doçuras, de desejos, de promessas, de amores.
Olhei para o mar transparente de ondas pequeninas e senti saudade do carinho Dela, levantei e fui.
Mergulhei e senti no abraço a doçura de um reencontro. Me deixei ficar alí, sentindo ora um amor de mãe, ora o de uma amante. Juro que se naquele momento Yemanjá quisesse me levar eu iria, e iria sorrindo.
Mas Ela só queria mesmo era dar as boas vindas a quem tão saudoso estava de volta.