Enochatos

Há algum tempo estava com uma amiga em uma adega procurando comprar um vinho. Precisávamos de um que fosse especial para presentear um amigo. Pedimos ao sommelier da casa que nos ajudasse a escolhe-lo, dissemos o que pretendíamos, o quanto queríamos gastar e o perfil do presenteado. A certa altura já com dois vinhos pré-escolhidos e prontos para decidir qual iríamos levar o sommelier foi taxativo.
- Levem este, ele tem mais elegância.

Nas últimas décadas o vinho vem fazendo cada vez mais parte da mesa do brasileiro médio. O hábito não apenas de toma-lo, mas também de degusta-lo tornou–se comum. O número de apreciadores e enólogos cresceu enormemente. Todos temos alguns amigos que assumem ares esotéricos, que meditam e transcendem frente a uma taça.
Qualidades, aromas, perfumes, paladares, características e nuances insuspeitadas são discutidas com rigor científico e dedicação religiosa. De cada taça surgem interações sublimes, experiências que beiram o divino.

Grupos se formam para esta adoração, novos altares são erguidos. Velhos amigos aparecem com novos e profundos conhecimentos, opiniões complexas, atitudes quase místicas. Há vinhos alegres, descontraídos, outros são  maduros, alguns sérios. Uns são meditativos, alguns são sonolentos. Outros ainda são decididos, alguns são desleais outros confiáveis. Há os atléticos, os frágeis, os elegantes, os sedutores, Alguns são irritantes outros simpáticos. Uns são amigos antigos, outros são novas companhias. Há alguns previsíveis outros caprichosos como jovens amantes.

Um desses amigos me levou à uma prova, a uma degustação em um desses lugares recentes.
O templo, digo a casa, muito bem decorada, luxuosa, de bom gosto e naturalmente cara. Com toda a infraestrutura ambiente, material e humana necessária ao culto. Além da área de exposição e vendas, o local tem diversas adegas com diferentes graus de umidade e temperatura.
Há uma sala para palestras e vários ambientes diferentemente climatizados para a mais perfeita apreciação. As diferentes climatizações com diferentes temperaturas, graus de umidade e iluminação reproduzem fielmente a terra natal dos vinhos. Um fator essencial para preservar o equilíbrio emocional do vinhos. 

O grupo de degustação era pequeno, no máximo sete pessoas, todas de nível sócio-cultural semelhante, simpáticas e amigáveis. As garrafas foram se sucedendo, o prazer da degustação visível em todos. Os comentários beiravam o sagrado, as descrições desciam a um nível de detalhes só acessíveis a iniciados. Comentários profundos e elegantes sobre características insuspeitadas ao comum dos mortais.

A casa além do pessoal técnico, administrativo e de serviço contava com um sommelier e enólogo argentino pago a peso de ouro. Uma autoridade, um sacerdote, um guru. Opiniões deslumbrantes, conhecimento elevado, uma intimidade ancestral com o vinho emanavam dele. Ele se movimentava etereamente pelo ambiente, emitindo conceitos e sentenças definitivas. Um gentleman, um connaisseur, um sábio.
A certa altura o grupo decidiu fazer uma aventura por terras desconhecidas. Provar um vinho nunca antes provado. Era uma decisão perigosa, um ato de ousadia que podia ter conseqüências inesperadas. Uma verdadeira temeridade.

Apesar de temerosos pelas conseqüências, todos estavam firmes no propósito, tão caracteristicamente humano, de se aventurar no desconhecido, de seguir ousadamente por rumos nunca antes trilhados. Um dos membros do grupo, certamente o mais prudente e mais responsável, resolveu se precaver para o que poderia ser uma atitude inconsequente com resultados imprevisíveis,  quem sabe até desastrosos. Ele sugeriu que se chamasse o Sommelier para nos socorrer. Para nos guiar e proteger nesta aventura. Todos louvaram a sugestão.

Era apropriado. Era sensato. Era o mínimo que o grupo poderia fazer para se proteger, para que pudesse com segurança minimizar um acidente inesperado, uma catástrofe, talvez até uma tragédia.
Escolheu-se alguém para chama-lo. Trazido por um dos membros do grupo, o Sommelier chegou com os passos cuidadosos de um pastor, a seriedade de um professor, a majestade de um sacerdote. Contaram-lhe a decisão. Ele aprovou a aventura e elogiou a coragem de todos.

O vinho foi pedido.
Quando a garrafa chegou foi severamente examinada com um misto de medo, apreensão e deleite. O desconhecido, o inusitado, o inesperado excitava a imaginação de todos. O medo e ansiedade enchiam a alma daquele grupo de exploradores indômitos. Sabíamos todos que o vinho era um desconhecido, sem muitas referencias, sem uma história familiar. Além de tudo ele, agravantemente, era de uma safra recente. A pouca idade do vinho tornava ainda mais temerária a decisão de prova-lo.

A garrafa foi aberta com todo o ritual e precauções necessárias. Afinal era um desconhecido, um estranho, quase um intruso. A primeira taça foi, naturalmente, servida ao Sommelier que se prestara a tamanho risco com a generosidade dos mestres. Ele levou lentamente a taça próxima ao rosto. Olhou-a demoradamente, girou-a muitas vezes. Observou com cuidado o comportamento do liquido nas paredes da taça. Finalmente, já mais confiante, se arriscou corajosamente em se aproximar um pouco mais da taça e bravamente levou-a até próximo de suas narinas privilegiadas. Respirou muitas e solenes vezes, em intervalos silenciosos. 
O grupo acompanhava tenso. Depois de sentir os vapores e aromas do vinho, ele encheu-se de máscula coragem e sem hesitar levou a taça decididamente até os lábios. Era o momento sublime da interação. Sorveu um gole.

De olhos fechados, infindáveis segundos se passaram antes que ele os abrisse novamente. O grupo ansioso, quase em estado de choque esperava pelo diagnóstico. Ele então, sublime, solene, definitivo nos atira este veredicto enorme:
- Este vinho tem na força de sua juventude a rebeldia natural da adolescência.