Os Brutos Também Amam

Aconteceu nesta quinta-feira.
Um ladrão havia trocado tiros com a polícia em Salvador e foi morto no tiroteio.
Instituto Médico Legal, atestado de óbito. Corpo entregue à família, velório no Campo Santo.

A policia imaginando, corretamente, que no velório poderia aparecer algum coleguinha de profissão do larápio também compareceu. Ficou a espera que algum suspeito chegasse. Dito e certo.
A certa altura aparece no velório um procurado pela Lei. Chegou de mansinho na sala para se despedir do colega. Aproximou-se do caixão.
Identificado pela polícia recebeu ordem de prisão no ato, na frente de todos. Começa a confusão. O larápio corre para o caixão,
- Socorro Nenéo, eles querem me prender.
O defunto parado estava, parado ficou. O ingrato não moveu uma palha para ajudar o bróder.
- Nenéo não deixa eles me levarem!

A policia tenta segurar o rapaz. Ele se agarra ao corpo do amigo. Puxa de lá, puxa de cá.
- Nenéo não deixa eles me levarem Nenéo. Nenéo me ajuda.
E Nenéo nem se tocava, quietinho. Não queria nem saber de nada daquela confusão. De prega, deitado de bôa.
Os presentes no velório já começavam a rir. A policia segura o rapaz. O rapaz não larga o amigo.
Puxa de lá puxa de cá, o caixão começa a balançar. As velas começam a cair, as flores já estão pelo chão, a família tenta consertar a bagunça.
Um crucifixo enorme que estava em um pedestal na cabeceira do defunto cai fazendo um barulhão. Quase atinge a cabeça de uma senhora de idade. Ela começa a se benzer.
- Valei-me Iansã, qui confusão da porra!

Os presentes viraram plateia. A plateia começa a rir.
- Nenéo não me deixa, Nenéo me ajuda, Nenéo não deixa eles me levarem.
A policia agarrada ao rapaz. Puxa de lá puxa de cá. Cai o caixão. Nenéo rola pelo chão, o amigo abraçado rola junto.
- Nenéo não deixa eles me levarem.
As salas dos outros velórios se esvaziam. A sala de Nenéo se enche de gente. O defunto no chão, o amigo abraçado, a policia em cima. O povo rindo de se acabar.
- Solta o Nenéo, discarado.
- Deixa Nenéo em paz, vagabundo.
A policia tenta acalmar os ânimos, tenta esvaziar a sala. Empurram os curiosos para fora, cassetete na mão.
- Se adiante, se adiante, aqui num tem nada pra ninguém.
A família se desespera. O padre se retira, carregando o enorme crucifixo nas costas.
- Deus é mais!
 O bróder não larga Nenéo. Os dois abraçados ali no chão.

Situação dominada. O colega algemado.
Os amigos ajudam a policia a recolocar o caixão no lugar. Uma servente do cemitério varre as flores espalhadas pela sala. O defunto ainda no chão. A servente dá umas vassouradas nas pernas de Nenéo para limpar umas folhas.
Família e amigos recolocam Nenéo dentro do caixão.
- Eita sacana pesado!

A policia retira o amigo algemado da sala. O povo vaia, assobia, grita.
- Discarado!
- Deixa o defunto em paz, filadaputa.
O rapaz sai cabisbaixo, algemado, chorando. Sai do velório arrastado pela policia. De repente ele para, olha para trás, olha o amigo pela última vez e soluça choroso,
- Nenéo eles estão me levando Nenéo.