Bombeiros de Portugal

Qualquer pessoa que tenha morado ou ficado em Portugal por algumas semanas se surpreende com a quantidade de corpos de bombeiros que há no país. 
Há praticamente um corpo de bombeiros em cada bairro. Em qualquer trajeto que se faça dentro de uma cidade você vai encontrar pelo menos umas quatro corporações. 

No começo você acha engraçado e começa a pensar que está num país de incendiários. De certa forma é mais ou menos verdade, pois anualmente há incêndios florestais catastróficos e muitos deles são incêndios criminosos. 
Mas em geral os grandes incêndios são problemas do ambiente mesmo. 
Esta enorme quantidade de centrais de bombeiros chama a atenção principalmente por que são sempre Bombeiros Voluntários.
Por que tantos bombeiros? Por que todos são voluntários? São mais de 430 corpos de bombeiros e quase 40 mil bombeiros voluntários.
Haja incêndios!
Aí você já começa a achar que o problema dos incêndios é realmente um problema nacional gravíssimo a ponto de haverem tantas corporações e todas elas compostas por voluntários. 
Com o tempo você começa a ouvir histórias e saber de muitos incêndios criminosos. Você começa a achar que a população se divide entre incendiários e Bombeiros Voluntários.

Quando se começa a prestar mais atenção nos tais Bombeiros Voluntários você vai notar uma segunda coisa ainda mais intrigante.
O Estado não tem bombeiros. 
Diferentemente da maioria dos países os bombeiros portugueses não estão ligados a uma organização militar oficial. São bombeiros profissionalizados, bem equipados, mas voluntários e independentes. 
Aí a coisa começa a ficar muito, muito estranha. 
Por que Portugal é diferente? O que os bombeiros ou os incêndios portugueses têm de especiais?
O mistério aumenta quando se nota que a atividade nos centros dos Bombeiros Voluntários é intensa. 
Tantos incêndios assim?
Não. A atividade é de outra ordem.

Os Bombeiros Voluntários, que existem às centenas, não se ocupam apenas de apagar incêndios.
Nas sedes das corporações há muito mais além dos tradicionais caminhões vermelhos, carros, ambulâncias, helipontos e equipamentos de combate aos incêndios.
Os Bombeiros Voluntários funcionam como clubes de suas comunidades. Há piscinas, bandas, corais, bibliotecas, creches, aulas de ginástica, diversos esportes e serviço médico. 
E naturalmente festas e mais festas. Algumas delas muito tradicionais, algumas centenárias.
Estes grupos civis, espontaneamente surgidos nas comunidades e altamente organizados além de serem independentes do estado cumprem funções normalmente associadas ao próprio estado.

Os Bombeiros Voluntários de Portugal são realmente fascinantes.
Eles têm uma história de mais de 1.200 anos. Exatamente: mais de mil anos.
As raízes dos bombeiros de Portugal são mais antigas que a própria Língua Portuguesa, mais antigas que o próprio Estado. 
Parece piada de português, mas os ancestrais dos Bombeiros Voluntários de Portugal nem sequer falavam português pelo singelo motivo que o Português, como o conhecemos hoje, sequer existia. 
A história começa na época da invasão árabe.

Cerca dos anos 800 os mouros tomaram a península Ibérica.
No território onde hoje fica Portugal a igreja católica exercia na época a maioria das funções sociais, jurídicas e de governo local. Quando os árabes tomaram a região os sacerdotes católicos fugiram. Curiosamente os árabes não tiveram o menor interesse em preencher o enorme vácuo administrativo. 
Neste vazio social surgiram nas cidades os grupos de “homens-bons”. 

Eles se reuniam nas praças, faziam coletas voluntárias e assumiram inicialmente o cuidado com os órfãos e as viúvas. Depois eles passaram a cuidar da manutenção dos bens públicos. 
Os “homens-bons” foram expandindo suas responsabilidades e assumiram todos os serviços sociais. Alguns jurídicos e religiosos inclusive. 
Eles também organizaram cooperativas de produção de azeite, vinho e outros produtos. Através destas cooperativas a produção era comercializada com os mercadores árabes. 
Para o invasor estrangeiro nada mais prático do que dialogar com representantes legítimos da sociedade, que assumiam tarefas sociais, administrativas e que além de tudo se autofinanciavam. 
Estas associações permaneceram e sobreviveram ao longo dos séculos e a diferentes regimes políticos. 

Em 23 de Agosto de 1395 foi criado o primeiro Serviço de Incêndios de Lisboa. Para apaga-los naturalmente.
O decreto dizia que: "...em caso que se algum fogo levantas-se, o que Deus não queria, que todos os carpinteiros e calafates venham àquele lugar, cada um com seu machado, para haverem de atalhar o dito fogo. E que outros sim todas as mulheres que ao dito fogo acudirem, tragam cada uma seu cân-taro ou pote para acarretar água para apagar o dito fogo". 
Quando D. João I promulgou esta Carta Régia as organizações dos homens-bons estavam prontas para assumir estas responsabilidades. 
Muito tempo depois em 18 de Outubro de 1868 eles adotaram nome e organização legal como Companhia de Voluntários Bombeiros de Lisboa, depois em 1880 como Associação de Bombeiros Voluntários.
Um pouco antes em 17 de Julho de 1834 a Câmara Municipal havia criado a Companhia de Bombeiros de Lisboa, que ficou conhecida como a Companhia do Caldo e do Nabo, designação para a qual não se conhece nenhuma explicação lógica. No jokes, please. 

Hoje nos bombeiros voluntários de Portugal sobrevive uma das mais antigas organizações sociais da História. Provavelmente a mais duradoura organização humanitária que se tem notícia. 
Mais do que apagar incêndios eles mantêm acesa a velha chama democrática do desejo de auto-organização e auto-proteção social. 
Sem utopias, na prática.