Toda Menina Baiana

Sexta-feira, 24 de Janeiro de 1992, Sintra, Portugal

Inverno português suave, nada de mais, uns 3 ou 4 graus. Ainda assim um frio razoável.
Na nossa casa fazíamos um daqueles inesquecíveis churrascos.

Havia um talho em Lisboa que importava os melhores cortes do Rio Grande do Sul. Lá se tinha melhor carne do que se poderia encontrar no próprio Brasil. Selecionada, cara, para exportação.
Por sorte estávamos do lado certo do balcão. Fora do Brasil, mas com a melhor carne brasileira possível.
Então era uma farra de maminhas, fradinhas e picanhas dos pampas, acompanhadas da deliciosa carne de porco portuguesa. Thanks D. Afonso, sorry mouros.
Engraçado desfrutar de tão excelente carne tendo o Castelo dos Mouros exatamente em cima de nossas cabeças.
Tudo isso regado ao excelente, o indispensável Dão. Tudo isso no paraíso de Sintra. Sorry again. Thanks again.

Sandra, Eric, Vahine e eu passávamos então tardes gloriosas de céu azul, sol brilhante, carne e vinho excelentes. E música, muita música. Vahine adorava, dançava.
Acho que é daí o gosto dela por blues e bossa-nova.

Mas à certa altura colocamos um CD de Gil e nele havia o Toda Menina Baiana. A musica é uma delicia, um baita suingue, aquela batida marcada, gostosa.
A musica terminou e a colocamos repeat. A música nos trazia uma alegria gostosa, uma saudade sem mágoa. Repetimos one more time.

A noite chegando, o Dão já bem bebido, o cansaço de uma tarde feliz, a música gostosa, o frio aconchegante. A música se repetindo, mais vinho, mais maminha, mais picanha, mais Gil.
Sandra não agüentou, a musica estava em loop.
- Esta musica já tocou mais de 20 vezes!
Grávida de cinco meses, ela se irritou, fechou a porta de vidro da varanda e tipicamente se retirou. Ela não é de reclamar duas vezes.
A musica continuava em repeat. Nem percebi quando ela saiu.

Só quando tentei entrar é que notei a casa trancada, Sandra já estava dormindo. O frio já estava incomodando, a carne acabara, o Dão idem.
Eu estava literalmente de castigo do lado de fora.
Bati muitas vezes na porta antes que ela aparecesse. Claro que ela acordou e abriu a porta sem reclamar, mas com aquela cara de quem não estava exatamente feliz.
Eu estava congelando. E certamente não iria me aquecer como gostaria.

Acho que Sandra nunca mais conseguiu ouvir Toda Menina Baiana.



Sexta-feira, 19 de Setembro de 2003, Nova Iorque, USA. Sede da ONU.

Doze anos depois.
Sessão solene de abertura da Organização das Nações Unidas. Todos os representantes dos países do planeta presentes. A maioria dos habitantes da Terra assistiu ao vivo ou viu depois nas TVs e jornais.
Eu estava em Recife, Sandra no Estoril. Um divórcio e um oceano nos separando.

O Brasil tradicionalmente é o país que sempre abre e conduz a sessão solene de abertura, a primeira sessão do ano da ONU. Neste ano o representante brasileiro para a abertura da ONU não foi o presidente da república, foi o Ministro da Cultura.
Gilberto Gil.
Em pleno final da sessão de abertura o ministro entrega ao secretário geral das Nações Unidas Kofi Annan um atabaque. O ministro toma uma guitarra. Espantosamente um show ia começar.
Os dois começam a tocar juntos para o planeta inteiro.
Todos os representantes no plenário acabaram dançando, rindo, batendo palmas.
Cantando Toda Menina Baiana.

Não deu para deixar de sentir muitas saudades de Sintra, rir muito e tentar imaginar o que Sandra teria feito se estivesse naquele dia visitando a ONU.