Lopo ao Molho Pardo

"É terra pecaminosa, desleixada e remissa e algo melancólica, e por esta causa uns trabalham pouco e outros quase nada, e tudo se leva em festas, convívios e cantares, e uns e outros são muito dados a vinhos." Padre Anchieta falando de negros, índios e portugueses no Brasil de 1583.

Há muito de lendário e estereotipado na imagem que fazemos, e que se faz, dos brasileiros. 
Mas Anchieta tinha algo de profético nessas impressões de uma nação que nascia. Como se uma marca estivesse a se formar e fosse permanecer de certa forma crônica nesta alma que haveria de produzir tantos carnavais, músicas e sensualidade. Uma marca que também carrega uma tendência à impunidade e corrupção.

Há um livro muito esclarecedor e divertido sobre estes primeiros tempos e sobre a formação do caráter macunaímico da nação brasileira, Terra Papagalli de José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta.
Romanceado em cima de fatos reais eles contam a saga de Cosme Fernandes, o Bacharel da Cananéia, "o primeiro rei do Brasil", um degredado que por aqui reinou no período em que a Coroa Portuguesa pouco se interessou pela colonização nas primeiras décadas de 1500.
Fernandes, filho de judeus que haviam se mudado da Espanha para Portugal, emigrou de Lisboa para cá. Aqui rapidamente aprendeu que nesta terra "é preciso dar presentes sem parcimônia, fazer alarde de qualquer dificuldade e que não há quem não troque honradez por honraria."

Mas a parte mais deliciosa, literalmente gastronômica, da saga de Cosme Fernandes acontece durante um grande revés na vida dele. Cosme depois de traído e escorraçado de suas terras de Cananéia está seguindo de barco para São Vicente.
Traído por Lopo de Pina, Fernandes tinha conseguido por as mãos no inimigo e o levava como prisioneiro no mesmo barco. Durante a viagem depois de enfrentar uma terrível tempestade que quase afundara a embarcação a tripulação está exausta e morta de fome.

Fernandes se lembra do primeiro dia de degredo no Brasil quando tinha enfrentado a fome com os companheiros recém chegados à terra junto com ele. Havendo a bordo da caravela uma única galinha para todos, Jácome Roiz matou-a e cozinhou-a no próprio sangue.
Fernandes se lembra também da filosofia do cacique Piquerobi que dizia que só há duas coisas que nos fazem felizes nesta vida: dar alegria aos amigos e tristeza aos inimigos e que a única coisa que reúne essas duas qualidades é a vingança.

Cosme Fernandes descobre que encontrara a solução para os dois problemas. O da fome da tripulação e o que fazer com o inimigo Lopo de Pina.
Ele então ordena que pendurem Lopo de cabeça para baixo num resto de mastro partido. Toma da espada, faz um talho no pescoço do inimigo e recolhe o sangue num balde. Quando Lopo de Pina parou de sacudir, separaram-lhe as partes, colocaram o sangue num caldeirão e o cozinharam por uma hora seguindo a receita de Jácome.

Uma espécie de prévia ao movimento Antropofagista de Oswald de Andrade. Ao molho pardo.