Mulher, em maori, o Vahine era um pequeno veleiro.
Na cabine interna havia uma cama dupla em V na proa e duas camas normais em cada lateral, no centro em baixo da escada de acesso havia uma grande geladeira e um fogão. Na parte de fora havia um enorme cockpit onde se sentavam seis pessoas. Às vezes mais. Um veleiro simpático e suficiente para se navegar e se divertir na Bahia de Todos os Santos, em Salvador.
Vahine significa mulher em maori, a língua dos nativos das ilhas do Pacífico Sul. Paul Gauguin, o impressionista francês, em seus anos no Tahiti achou que tinha descoberto um paraíso intocado pela civilização. Lá ele pintou muitas obras-primas e muitas "vahines" fazem parte desta fase. Gosto muito destas pinturas e por isso escolhi o nome de Vahine para este veleiro.
Foi um caso de amor à primeira vista. Com a experiência que tinha ganhado em veleiros de amigos e em regatas comecei a navega-lo sem restrições. Na maior parte das vezes sozinho. Foi das melhores coisas e experiências que já tive.
Foi um caso de amor à primeira vista. Com a experiência que tinha ganhado em veleiros de amigos e em regatas comecei a navega-lo sem restrições. Na maior parte das vezes sozinho. Foi das melhores coisas e experiências que já tive.
Aconteceu de tudo um pouco. Na primeira vez que o velejei, sai numa sexta-feira direto do trabalho, com um monte de compras, comidas e bebidas para um fim de semana. Saí sozinho e à noite. Antes de me fazer ao mar perguntei a um dos marinheiros dos barcos que ficavam próximos de onde o Vahine ficava apoitado.
- Vou para a ilha de Itaparica, como faço para chegar lá?
- Vá na direção daquelas luzes mais fortes. São as luzes da atracação dos ferry boats lá na ilha. Cuidado para eles não passarem por cima de você.
- Ok, obrigado.
Armei a vela grande (do mastro) e a genoa (de proa), cacei e recolhi os cabos de atracação e comecei gentilmente a navegar com meu novo amigo. A brisa suave da noite, o colorido e as luzes da cidade que se distanciavam e um grande céu estrelado eram meu ambiente. À frente a escuridão de um mar tranqüilo e conhecido. O objetivo, uma luzes amigas.
O Vahine estreava nossa amizade com um balanço suave, umas velas brancas cheias de vento, um suave murmurar na água, uma velocidade agradável. Não sei qual dos dois estava mais feliz. Vahine por estar tão bem em seu elemento, roçando seu casco branquinho em águas tão agradáveis, ou se eu por ser seu convidado nesta festa. Felizes estávamos os dois com certeza. Eu sabia que era o começo de uma grande amizade e resolvi brinda-la com um uísque. Ao fim de pouco mais de duas horas chegávamos na ilha.
Os ferry boats vistos de tão baixo eram enormes e assustadores. Naveguei entre eles e outros barcos. Procurei um lugar para ficar, soltei ferros e ancorei.
Recolhi as velas, organizei tudo no cockpit e fui preparar alguma coisa quente para comer. Jantei no cockpit, coloquei algumas músicas, tomei mais alguns uísques e fiquei desfrutando aquele ambiente, aquela primeira velejada deliciosa, aquela sensação gostosa de que está tudo funcionando bem. Depois dos uísques fui dormir minha primeira noite no Vahine.
Acordei numa manhã esplêndida, exageradamente azul e brilhante.
O casco branco do Vahine refletia em meus olhos uma festa de luz e de cores da ilha que agora eu podia ver melhor. Há poucas coisas mais agradáveis do que chegar à noite de veleiro e amanhecer em um lugar bonito. A surpresa do inesperado, a sensação de estar envolvido pela beleza de um lugar ou de detalhes até então desconhecidos é inesquecível. Por isso há tanta gente que passa anos velejando mundo afora.
Sorrindo respirei fundo muitas vezes antes de voltar à cabine, tomar o café da manhã e me preparar para continuar a velejada. Recolhi a ancora, levantei as velas, apontei ao largo e comecei a contornar a ilha. Olhando praia por praia, vila por vila. Praias que apontavam, surgiam, ficavam próximas e passavam enquanto o Vahine me levava num passeio sem fim. Bastava cuidar das velas, manter o rumo e desfrutar da paisagem. Navegar é preciso. Viver mais ainda.
Essa amizade teve momentos apaixonantes.
O Vahine cada vez me entendia melhor e eu a ele. Conhecíamos nossas limitações e não exigíamos do outro o que não éramos capazes de fazer. E assim, cada vez nos entendendo melhor, passamos dias maravilhosos, passeios de profundo encantamento. Situações de beleza emocionante.
Como numa noite de céu absolutamente claro e lua cheia. Nosso rumo por acaso nos colocou numa rota exatamente em cima do reflexo da lua nas águas do mar.
Como numa noite de céu absolutamente claro e lua cheia. Nosso rumo por acaso nos colocou numa rota exatamente em cima do reflexo da lua nas águas do mar.
Tudo escuro, o mar muito calmo, com pequeninas ondas formadas pela brisa que nos carregava.
Ao nosso lado pequenos peixes prateados saltavam e mergulhavam no mar. Um silêncio absoluto onde só se ouvia o barulho das velas recebendo a brisa. No céu estrelado, uma lua redonda, clara, enorme, começava a se aproximar do horizonte. Embaixo de tudo isso um rastro prateado no mar. Uma estrada enorme, prateada, luminosa. Um rastro infinito, muito largo, uma estrada de luz em direção ao horizonte. Neste cenário de paraíso o Vahine alegremente navegando me conduzia por essa estrada de luz prateada.
Este amigo também me acompanhou em situações difíceis. E como bom e verdadeiro amigo não me deixou só. Nem por um segundo. Sempre ao meu lado compartilhando meus medos e ansiedades.
Como uma vez em que o mastro se partiu com convidados à bordo. Sem pânico e na verdade com muito bom humor, conseguimos restabelecer alguma potência nas velas e voltar para casa.
Ou em uma outra situação, desta vez velejando sozinho, em que uma das ferragens do leme se partiu e ficamos sem ele. Sem leme no meio do mar.
O Vahine nunca se atrapalhava nestas situações, nem me deixava tenso por conta delas. Depois de colocar no mastro o sinal de pedido de socorro, que no mar é coisa seríssima, fomos rebocados por uma lancha. Quando a lancha se aproximou o marinheiro perguntou se queríamos voltar ou seguir em frente. O Vahine jamais voltaria assim para casa, desanimado, com um passeio estragado. Fomos em frente. Ficamos em uma ilha, Ilha de Maré, lá conseguimos um mecânico que improvisou uma peça de reposição. Ficou tão bem feito que o pino novo ficou melhor do que o original.
Nos entendíamos tão bem que muitas vezes o Vahine velejava sozinho, sem que eu precisasse ficar ao leme ou segurar os cabos das velas. Como em uma manhã absolutamente azul, em que depois de regular as velas e fixar o leme ele me deixou ficar lá na proa, vendo seu casco abrir caminho no mar. Me permitiu por alguns bons e longos minutos ouvir um enorme solo de jazz, tomando um uísque e comendo umas coisinhas. Difícil encontrar amigo melhor.
O Vahine me levou por grandes velejadas, mesmo as que foram interrompidas por alguma calmaria, molhadas demais por alguma chuva ou barulhentas demais por causa de algum vizinho de porto.
Algumas foram solitárias, outras bem acompanhadas e algumas muito amorosas. O Vahine sempre muito discreto dessas nunca comentou nada. Sempre bom amigo, às vezes irmão, quase sempre um terapeuta. Eventualmente foi um confidente. Lá no meio do mar ninguém se espantaria se nos ouvisse conversando.
O que mais me marcou na minha amizade com o Vahine foi o que aprendi com ele. Não apenas nas lições de poesia e beleza que ele me conduziu, mas principalmente na mais dura e importante lição de minha vida.
Final de Dezembro. Tínhamos velejado para Itaparica e ficado apoitado em frente da casa de um amigo. Passamos o dia 31 juntos com ele, amigos e família, aproveitando o último dia do ano. Depois do almoço me despedi avisando que estava voltando para Salvador.
- Por que não fica e rompe o ano conosco?
- Prometi a minha mãe e a meu filho que passaria com eles.
- Então dê um abraço nos dois.
E parti. A tarde estava muito agradável e apesar do vento contra em cerca de no máximo três horas estaríamos na Enseada da Ribeira. Isso por um cálculo para lá de pessimista que era a margem que eu tinha para chegar bem e me preparar para a festa de Réveillon. A velejada de volta estava agradável apesar do contravento. Eu fazia bordos longos para aproveitar melhor o través, velejando mais confortavelmente. A velejada prometia ser mais uma daquelas que o Vahine sempre fazia. Ele conheci muito bem o caminho.
Mas eis que de repente o vento da cabeça de uma frente-fria começa a soprar. O céu começa a ficar escuro, nuvens pesadas se aproximam. Começa a se formar um tempo pesado. Mudou tudo. Mudou completamente. O vento agora estava forte. Folguei as velas para não forçar o equipamento, mesmo por que com potencia demais no través qualquer barco atrasa mais que adianta.
O vento aumentava, e aumentava muito. A força da cabeça da frente estava anunciando ventos muito fortes. Conferi nossa posição, estávamos a meio caminho. Tanto fazia continuar como voltar. Eu sabia que o Vahine entenderia minha prudência se eu decidisse voltar atrás, mas não fazia diferença. Estávamos no meio do caminho e o vento seria difícil em qualquer das duas situações. Não havia uma posição mais favorável que a outra. Melhor então era continuar.
O maior problema é que estávamos sem velas adequadas. As velas que tínhamos eram velas leves para vento fracos e médios. A solução era velejar com as velas mais folgadas e fazer bordos maiores. Mas o vento começou a aumentar ainda mais. As rajadas faziam o Vahine adernar com violência e faziam o mar lavar o convés A água rompia pela proa, passava pela cabine e descia pelo cockpit. A situação estava ficando preocupante. Nesta altura as velas já estavam completamente inadequadas para a situação. O céu que estava escuro ficou fechado. Com toda a força do vento o Vahine velejava com dificuldade em bordos imensos que não estavam nos levando muito adiante. Ele se ressentia da força do vento e agora das ondas que se formavam na proa. As ondas ficavam cada vez maiores e difíceis de ultrapassar. Nestas subidas de onda o Vahine perdia muita velocidade e quase parava. Ao recuperar o rumo e a velocidade as velas batiam muito e os estais, cabos de sustentação do mastro, rangiam e batiam um bocado. O Vahine estava sofrendo muito naquela situação que eu o tinha colocado.
Eu já estava completamente molhado pelas ondas que batiam e me equilibrava o melhor que podia no cockpit. E esperava que o Vahine pudesse aguentar toda aquele esforço. Começou a chover. A água da chuva me trouxe algum conforto me lavando de todo aquele sal na roupa e no corpo. Mas não por muito tempo, pois logo eu estava absolutamente encharcado. A chuva era muito forte, o dia escurecia, nosso objetivo ainda estava distante. Escureceu completamente já não se enxergava nada. A chuva cobria tudo apenas o vago clarão da cidade se avistava ao longe. O vento piorou, as ondas ficaram maiores, a chuva estava pesada. Já era noite.
Agora o Vahine estava no meio de uma tempestade e sem equipamento. Não tínhamos uma storm jib, vela de tempestade, para substituir as de proa nem sistema de redução na vela do mastro. Estávamos velejando em uma tempestade com velas para vento fraco e médio.
Agora o Vahine estava no meio de uma tempestade e sem equipamento. Não tínhamos uma storm jib, vela de tempestade, para substituir as de proa nem sistema de redução na vela do mastro. Estávamos velejando em uma tempestade com velas para vento fraco e médio.
O risco para o Vahine era muito alto, as velas podiam se rasgar ou os cabos de sustentação do mastro não suportarem a pressão. E se suportassem a pressão poderiam partir o mastro ao transferir potencia para ele. As opções críticas eram velas rasgadas, estaiamento partido ou mastro quebrado. Supondo que o leme resistisse a tantas pressões.
O tempo piorara. O vento estava instável, as rajadas tinham deixado o mar com ondas vindo de todas as direções. As ondas desencontradas deixavam ainda mais difícil para o Vahine manter um rumo. O vento instável não deixava as velas manterem um potencia constante. O Vahine estava numa situação muito perigosa. Nosso rumo estava difícil de manter, os bordos estavam cada vez mais longos e o objetivo distante. O Vahine parecia resistir a tudo isso.
E eu? Eu estava com medo. Muito medo. Sabia que os riscos para o equipamento naquela tempestade eram altíssimos e a probabilidade de quebra iminente. A qualquer momento algo poderia se partir e se qualquer coisa se rompesse, fossem as velas, o mastro, o estaiamento ou mesmo o leme, a conseqüência inevitável seria o naufrágio.
E eu? Eu estava com medo. Muito medo. Sabia que os riscos para o equipamento naquela tempestade eram altíssimos e a probabilidade de quebra iminente. A qualquer momento algo poderia se partir e se qualquer coisa se rompesse, fossem as velas, o mastro, o estaiamento ou mesmo o leme, a conseqüência inevitável seria o naufrágio.
Fazia horas que estávamos nessa situação, eu estava tenso, cansado. O mais esmagador numa situação como essa é que você não pode desistir. Não dá para parar o jogo. E pior, não tem a quem pedir ajuda. Você está sozinho e tem de se manter sob controle. Não dá para desesperar, não dá para fugir. Sem alternativa. Você tem de enfrentar a situação, tem de ter calma e tem de vencer. Você não tem a opção de perder, só a de ganhar. Sem alternativa, sem chance. Você tem de ir em frente e vencer.
Já era noite escura. Os bordos eram longos e desanimadores, eu passava na frente dos mesmos marcos referenciais muitas vezes conseguindo ganhar muito pouca altura. A cidade, o objetivo, parecia fugir das minhas mãos e cada bordo me jogava de novo mar adentro. O bordo seguinte me aproximava um pouco mais do objetivo, mas muito devagar. Apesar da sede beber água era um sacrifício, por conta do subir e descer nas ondas; um malabarismo para beber mais do que perder a água que se derramava das garrafas. Por conta da sede, de um pouco de fome e do grande cansaço comecei a ouvir algo absolutamente fascinante. Coisas que náufragos e marinheiros contam. Assobios de sereias, choros de crianças, vozes de mortos. O mar desencontrado, as ondas em várias direções criam vales, caminhos e túneis por onde o vento passa em vários sentidos e em várias velocidades. O resultado são sopros, assobios e sons semelhantes a choros, gemidos e sussurros, nos mais diversos tons, alturas e durações.
Fascinante vivenciar o que fez tremer tantos náufragos e marinheiros. Dá para entender por que eles se amedrontavam.
Mesmo com todas as ondas, chuva, vento forte e neste ambiente de medo e ansiedade, continuamos em direção ao nosso objetivo. Eu agradecia a resistência de meu amigo e sabia que ele esperava o mesmo de mim. Aos poucos a tempestade foi diminuindo e já se via melhor as luzes da cidade. A chuva acabou mas o vento continuava forte. O Vahine já conseguia navegar melhor e corajosamente aguentava um esforço para o qual não estava preparado.
O tempo melhorou e em mais algumas horas o Vahine estava em um bom rumo, bastante paralelo à cidade e na direção da entrada da enseada da Ribeira. Minhas mãos estavam quase feridas de segurar o leme e de tanto soltar e apertar os cabos das velas. Mas finalmente estávamos indo no que parecia ser o último dos bordos em direção ao nosso porto.
Quando estávamos quase chegando à boca de entrada da enseada da Ribeira comecei a ouvir os estrondos e as luzes de fogos de artifício. Já era meia noite. Os fogos pipocavam por toda a cidade, o céu se iluminava de cores e festa. Estávamos neste momento entrando na enseada da Ribeira. A cidade comemorava a chegada do Ano Novo. Comentei com o Vahine:
- Não precisava tanto, é muito exagero só por que estamos chegando.
A cidade comemorava a chegada do Ano Novo e eu comemorei nossa chegada com um enorme palavrão que só o Vahine ouviu. Juntos acabáramos de enfrentar dez horas e meia de tempestade. Ele chegara inteiro. Ele me trouxera inteiro de volta. Beije-lhe o casco branco, salgado, cansado.
No dia seguinte li nos jornais que alguns barcos tinham naufragado e algumas pessoas tinham morrido. Nunca em toda a minha vida alguém havia me ensinado tão completamente o valor da perseverança. Nunca ninguém havia me feito compreender tão bem que não se pode desesperar, não se pode desistir, que as dificuldades existem para serem enfrentadas, que o medo é para ser dominado, que o cansaço é para ser esquecido.
Nunca eu tinha sentido tão de perto que desistir é morrer e que a melhor alternativa é vencer.
Tudo isso o Vahine me ensinou. Alguns anos depois, quando uma linda menina nasceu para ser minha filha eu lhe dei o nome de Mulher. Em Maori.
Nunca eu tinha sentido tão de perto que desistir é morrer e que a melhor alternativa é vencer.
Tudo isso o Vahine me ensinou. Alguns anos depois, quando uma linda menina nasceu para ser minha filha eu lhe dei o nome de Mulher. Em Maori.