Memorial do Retirante

Recife tem o privilégio que poucas cidades têm no mundo de ter uma grande obra de Oscar Niemeyer. Cidades se transformaram em cartões postais por conta disso. 
O grande mestre da arquitetura moderna, que levou adiante os conceitos de Le Corbusier, é indiscutivelmente o gênio das curvas impossíveis e sensuais. Pela idade avançada de Niemeyer ter hoje um projeto dele mais que um privilégio é uma oportunidade imperdível, é ter um patrimônio inestimável.

Sendo o centro geográfico e quase sempre cultural e intelectual do Nordeste, Recife sofreu ao longo de décadas as conseqüências desta localização e de suas misérias, principalmente as da Seca.
Para a cidade convergiram os miseráveis e desamparados de toda a região ao seu redor à procura de refúgio. Famílias de retirantes dos estados vizinhos chegaram aos milhares, expulsas pela seca. 
Recife foi quem pagou, sem poder, o alto preço de recebe-las.

Famílias inteiras aqui chegaram e aqui se desagregaram.
Os homens que estavam em condições de trabalhar terminavam por emigrar para o sul do país. Eles quase nunca retornavam deixando definitivamente para trás suas mulheres, velhos e crianças que estressaram a infraestrutura da cidade. 
Recife se enchia de crianças abandonadas, miseráveis, mendigos e prostitutas. A cidade acabou inevitavelmente por herdar todas as conseqüências sociais, políticas e urbanas desta situação indesejada. A cidade até hoje guarda em seu caráter e em sua estrutura a marca forte e a lembrança de tudo isso. Nenhum lugar portanto seria mais merecedor de sediar um Memorial do Retirante.

E assim foi feito.
Um grande centro de exposições começou a ser construído pela prefeitura da cidade no bairro de Boa Viagem. O Parque D. Lindú tem o nome da mãe do presidente do país, ele próprio um retirante, o mais famoso deles, projetado por ninguém menos que Niemeyer.
Para quem o vê pela primeira vez o conjunto arquitetônico além de belíssimo é avassalador pois o mestre criou uma obra-prima que instantaneamente transmite pela formas limpas e simples toda a solidão, o desamparo e o vazio da condição de um Retirante. 
De quem é obrigado pela miséria a abandonar sua terra em direção ao desconhecido.
É muito difícil não se emocionar e sentir imediatamente todo o contexto humano dos retirantes da seca que aquelas formas transmitem. A arquitetura trás um sentimento, uma história. O conjunto tem a expressão de um poema.

Mas a cidade envergonhada de seu passado rejeitou a obra.
Chegou a pensar em transformar o parque em uma área verde. Um contrasenso brutal querer povoar de verde um memorial ao retirante da seca. Hoje o parque se transformou num grande imbróglio. Esta semi-abandonado há anos e não se sabe se será um dia concluído e como será. 
A situação é ainda mais absurda por uma obra-prima desta importância estar semi-abandonada. Um parque que a população não desfruta com equipamentos que não funcionam. 
Além de um desrespeito ao bolso de contribuinte é mais um esqueleto inacabado numa cidade que já convive com tantas feiúras e mazelas.

Conviver com o passado, resolver suas questões e suas pendências é essencial para a saúde mental de qualquer indivíduo, quanto mais para a história de uma cidade. Negar suas heranças, mascarar sua história, fugir dessa realidade é doentio e impede que se resolvam os traumas do passado, para que se possa olhar com dignidade para o presente e construir o futuro.

PS.: Este post foi escrito em 2010. Hoje felizmente a obra foi terminada e se integrou na vida cultural da cidade.