A Invenção da Indolência

Na tese O Mito da Preguiça Baiana, Fabricio Marques da Fapesp e Elizete Zanlorenzi da USP, estudam o mito da indolência baiana. Eles notam que alguns baianos quando chamados de preguiçosos tomam isso como elogio. Dorival Caymmi e Gilberto Gil, por exemplo, tratam desta preguiça como se fosse um traço da identidade cultural da Bahia, como uma expressão de um modo de vida. Puro marketing e bastante duvidoso.

Note o caso do próprio Carnaval, que já foi Da Bahia hoje é o carnaval Na Bahia. Lugar de diversão para turistas, de trabalho duro para o povo. Uma festa cara, onde poucos grupos faturam alto à custa de gastos altíssimos para o Estado, isto é, para o contribuinte.
Não existe melhor lugar para se ter um ataque cardíaco do que no circuito do carnaval de Salvador. De qualquer ponto em que se esteja há sempre à mão uma ambulância, um posto, uma UTI móvel. Procure o mesmo nível de atendimento depois da Quarta-feira. Filas intermináveis nos hospitais públicos.
Na folia há banheiros químicos por todo lado, ruas varridas e lavadas constantemente. Depois? Xixi e lixo por todo lado.
Idem para segurança. Há policiais sempre por perto, helicópteros da PM sobrevoando a festa em contato direto com os policiais no solo. Ação imediata e super rápida. Depois das Cinzas? Cinzas. O Estado é campeão de violência.

A tese mostra que a origem do estereótipo nada tem de benigno, foi criado pela elite da própria Bahia com o objetivo de depreciar os negros, a maioria da população. Formado nos tempos da escravidão o estereótipo ganhou força como reação à Lei Áurea.
Realmente, a elite da Bahia é a mais preconceituosa do país. Numa cidade onde quase 90% da população são pretos ou mulatos, eles são muito discriminados. Salvador é uma cidade com fortíssimo preconceito de cor. Casais bi-raciais são tratados com desprezo.

Tenho um casal de amigos se mudou para Brasília por conta das humilhações que passou. Meu filho já teve impedida sua entrada em um restaurante por que as mesas estariam todas reservadas, apesar de visivelmente vazias. Tive uma namorada que foi insultada quando ficou sozinha na mesa de um bar enquanto fui ao toalete.

Negriagem, por mais absurdo que pareça, é uma gíria baiana para coisas mal feitas. Deixe de negriagem significa deixe de fazer merda. Isso na cidade do Olodum, do Ilê Ayiê, na maior cidade negra fora da África. A Ladeira da Preguiça é outro símbolo deste preconceito. Nos tempos da escravidão quem reclamava da ladeira, extremamente íngreme, carregando nas costas as mercadorias desembarcadas no porto, eram os "negros preguiçosos". Os brancos que assistiam das janelas dos sobrados ao enorme esforço gritavam:
- Sobe preguiça!

Vida tranqüila e aversão ao trabalho não têm base real. Analisando o calendário de festas na Bahia a dupla paulista fez descobertas curiosas. Uma empresa com sede no Pólo Petroquímico de Camaçari registrou menos faltas durante o Carnaval do que sua filial de São Paulo.
No final dos anos 1980 entre as pessoas ocupadas na Região Metropolitana de Salvador, 50% trabalhavam mais de 48 horas semanais e 36% de 38 a 47 horas por semana.

Uma conclusão surpreendente do trabalho mostra que a imigração nordestina, ao ser antagonizada pela européia, fez o racismo crescer no Sul e no Sudeste. Fora da Bahia, baiano significa tolo, negro, mulato, ignorante e se refere a todos os oriundos do Nordeste.
O costume tem origem no nome da estrada que conduziu o êxodo nordestino, a BR-116, a Rio-Bahia. Os imigrantes foram indistintamente rotulados de baianos apesar de serem na maioria paraibanos e pernambucanos. O fato não deixa de ser curioso, pois o baiano de Salvador culturalmente não é nordestino.

A dupla de paulistas conclui que depreciar nordestinos como preguiçosos é uma estratégia para excluí-los socialmente. Os dois grandes motores do preconceito foram a falta de capacitação e a intolerância dos imigrantes europeus do sul do Brasil.
Alemães, italianos e outros, não queriam ser equiparados aos brasileiros pobres com quem disputavam o mercado de trabalho e o espaço urbano. O mito da preguiça fixou uma forma sutil, já que folclorizada, de racismo.

Dete é minha baiana preferida. Para meu paladar ela cozinha o melhor abará de Salvador. Baiana do acarajé ela começa a preparar suas delícias antes do dia clarear.
Rala e descasca todo aquele feijão para a massa do acarajé, enrola e cozinha o abará, faz o exaustivo vatapá, prepara o carurú, a passarinha e faz o molho de camarão. De doces ela faz a cocada branca, a marrom e a preta, faz o doce de tamarindo, o cuzcuz doce e o bolinho de estudante (conhecido como punheta).
Às quatro e meia da tarde Dete e seu tabuleiro já estão na rua. Então ela passa o resto da tarde e boa parte da noite sentada, bem vestida com as cores do santo do dia, cheia de colares, sorrindo e conversando com os fregueses. Na maior preguiça.
Às dez da noite ela desarma tudo, limpa a calçada que ocupou. Guarda numa casa próxima o bujão de gás, o fogareiro, o tabuleiro, os banquinhos onde os fregueses se sentam, litros de azeite de dendê e todo o arsenal de panelas, travessas, toalhas e roupas. Finalmente ela vai para casa dormir para novamente acordar antes do sol nascer. Na maior preguiça.

A noção de tempo e trabalho para os baianos é fortemente influenciada pelo Candomblé onde as Obrigações são algo que se escolhe, que não se faz forçado. Vem da tradição africana o conceito de que o trabalho não é o foco principal da vida e de que trabalho e lazer não se opõem.
Esta maneira de ser e de estar é reflexo de uma religião e ideologia isentas do pecado e sem a Culpa cristã. Também passa longe da Teologia da Prosperidade protestante que foi a base ideológica do estabelecimento do Capitalismo, vide Max Weber em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.

Tudo isso não significa que as pessoas não trabalhem. Trabalham e muito, mas sem colocar o trabalho como objetivo central da vida e cuidando muito das relações de fora da esfera do trabalho. Por exemplo: embora as relações formais sejam naturalmente marcadas pelo relógio, as relações informais baianas seguem um tempo maleável. Muitas pessoas em Salvador sequer usavam relógio, aparentemente pelo baixo poder aquisitivo, mas a questão é outra porque um relógio não é tão caro.

O centro fundamental da questão é que a visão de vida baiana foge do cartesiano, foge do utilitário, não é européia, não é fruto da revolução industrial. Nela existe a consciência de que entre um evento e outro pode ocorrer um terceiro, as pessoas sabem que a rigidez dos horários está sujeita ao imprevisto. Não é em absoluto uma visão mecanicista.
Apesar de se basear numa cultura muito antiga esta noção é inacreditavelmente contemporânea na percepção da relatividade e incerteza da vida e do universo. Os eventos são vistos como possibilidades de ocorrência. 

É uma espécie de aplicação prática tanto de Einstein quanto de Planck. Um modus onde seria possível conciliar tanto as teorias do primeiro quanto as do segundo. Todo físico moderno sabe que este espírito, comum também aos indianos, é o mais adequado para os novos desafios do conhecimento.
Dizendo de forma mais divertida, como pede o próprio objeto do assunto, seria uma forma de raciocinar onde o tempo pode fazer uma curva ao redor do Farol da Barra. De saber que tudo depende de como e de onde você enxerga os eventos e o próprio tempo. De que no universo muitas vezes não há como se medir ou se expressar, e se insistir muda o estado das coisas.

O Turismo explora muito este mito da preguiça. Quer descansar, venha para a terra onde a festa nunca termina, onde ninguém se preocupa com relógio. Nos anos 60 se notou que ele tinha forte apelo e desde então virou Marketing.
Desde então os baianos trabalham duro para manter esta ilusão capaz de entreter milhares de turistas. A ilusão de que baiano não gosta de trabalhar.
Uma nigriagem só, na maior priguí. Aff.., coisa de preto!