Foi numa edição do Partenariat Europa-Magreb, em Túnis, que conheci Musthafa Grissi.
O mega evento é promovido pela Comunidade Européia para aproximar empresas europeias e magrebinas, facilitar negócios, mas sobretudo para apoiar o desenvolvimento econômico dos países do Magreb - Marrocos, Argélia e Tunísia - no norte da Africa.
A preocupação européia com o desenvolvimento social e econômico do Magreb se justifica não apenas pela proximidade física mas pelos problemas de todos os países europeus com imigração indesejada. Boa parte do Magreb é a outra costa do Mediterrâneo em frente da Espanha, França e Itália, a menos de 15 km da Europa.
Para apoiar a região existem financiamentos, apoio tecnológico, subsídios a fundo perdido, facilidades aduaneiras e tarifárias.
Fui convidado pela Câmara de Comercio e Industria Luso-Arabe para participar do Partenariat em Túnis. Assim conheci Grissi, jovem diretor de uma fábrica francesa instalada na Tunísia. Sucessivas visitas e contatos profissionais terminaram por se transformar em grande amizade. Grissi era um pessoa muito especial.
Quando o líder nacionalista Habib Bourguiba proclamou a Tunísia independente da França em 1956 ele fundou uma república secular muito liberal na época para os padrões de uma nação árabe de maioria islamica. O pais se modernizou, ocidentalizou-se, aproximou-se de Israel, impôs legalmente a tolerância religiosa, incentivou o turismo e acelerou economia. Nestas transformações o novo estado investiu em educação para tirar o país do atraso colonial.
Grissi nasceu quando Bourguiba chegou ao poder.
Ele nasceu e morava com a família nas cavernas de Matmata, escavadas abaixo do solo do deserto do Sahara, formando redes subterrâneas como túneis de cupins. Elas se interligam formando um labirinto subterrâneo onde vivem famílias inteiras há centenas de anos.
A estrutura social das tribos é rígida e patriarcal. Não se ensina as mulheres a falar, elas raramente saem dos túneis e não dirigem o olhar a nenhum homem, só ao pai. Depois de casadas passam a olhar apenas ao marido.
Com a nova ordem Grissi frequentou uma escola de ensino básico. Um dia representantes do Estado vieram buscar o menino. Excelente aluno ele foi separado da família para estudar na capital.
Ele se destacou desde os primeiros anos até chegar a hora de iniciar um curso universitário.
Pelo excelente desempenho o Estado mandou-o para Paris para a École Polytechnique que desde 1794 forma a elite francesa. De lá saíram alguns Nobel.
Grissi passou nas provas de admissão, cursou a escola e formou em Engenharia como melhor aluno da turma. O menino árabe tirado das cavernas do Sahara foi o mais brilhante aluno em Paris.
Choveram ofertas de trabalho para ele ficar na França, mas Grissi sempre respondia que só aceitaria trabalhar na Tunísia. Já casado com Martine, uma francesa, ele repetia:
- Vou voltar para dar retorno por tudo que meu país investiu em mim.
Ele voltou para a Tunísia, com sua Martine.
Pelas condições locais ele sempre trabalhou em funções muito aquém de sua formação e capacidade, até que uma industria francesa instalou uma fabrica de eletrônicos e lhe entregou a direção.
Quando retornou à Tunísia, Grissi tentou tirar o restante da família dos túneis de Matmata, mas enfrentava a resistência do pai. Mesmo assim havia conseguido, há alguns anos, trazer o irmão Ámor para estudar e morar com ele em Tunis.
Convidado para um jantar, uma noite estávamos Grissi, Martine, Ámor e eu na casa deles bebendo e conversando. Enquanto Martine preparava mais um daqueles excelentes jantares franceses Grissi me conta:
- Tenho uma grande novidade. Consegui trazer minha irmã Bouchra para morar conosco.
Fiquei surpreso. Muito surpreso e contente. Era uma vitória que o pai dele tivesse permitido que a filha saísse do ambiente patriarcal. A menina tinha 15 anos e só agora estava começando a aprender a falar. O choque cultural era enorme. Ela saíra de uma caverna para morar numa cidade, numa casa de hábitos franceses. Grissi contou as dificuldades de adaptação de Bouchra a tantas mudanças. O máximo que Bouchra tinha aceito fôra freqüentar uma escola de costura numa pequena turma de mulheres.
- Pelo menos assim ela vai aprendendo a falar francês.
Fiquei muito curioso de conhece-la.
Grissi disse que naquele exato momento ela estava no quarto, no andar de cima, mas que certamente não iria descer.
- Principalmente por que há outro homem na sala.
Mudamos de assunto, continuamos a beber e conversar até que Martine diz,
- J'ai une surprise pour vous.
- Surpresa para mim? Martine o que estás tramando? Ela ri um sorriso enorme.
- Une cassete de musique. Gravei uma fita só com música brasileira para esta noite.
- A gentileza de vocês não tem limites!
Enquanto ela colocava a fita para tocar fiquei imaginando que tipo de música Martine teria escolhido. Que tipo de musica brasileira eu iria ouvir ali na Tunísia? Tinha que me preparar para ouvir qualquer coisa e principalmente para gostar, por pior que fosse.
Ela colocou o volume muito alto, a música encheu a sala. Levei um choque de alta voltagem. Som de tambores, marcação inconfundível.
Longe de casa, num país árabe, há tantos anos sem ver Salvador, de repente os tambores do Olodum estrondaram alto pela sala. Engoli em seco, tomei um gole de vinho, segurei o soluço.
- Vous connaissez? Vous aimez?
- Se conheço? Se gosto? Eu adoro! Martine, você não poderia ter escolhido melhor. És uma bruxa! Esse grupo é o Olodum - deus dos deuses - são da cidade onde eu morava.
Martine, Grissi e Ámor riram espantados com tamanha coincidência.
Em seguida ao Olodum a fita tinha muitas músicas, todas da Bahia, sabe-se lá por que. Mais eis que de repente se ouve a voz de Gal Costa. Gal começa a cantar as primeiras notas de Caymmi,
- São Salvador, Bahia de São Salvador... Foi demais, eles notaram.
Levantaram-se, se aproximaram, me deram um abraço enorme. Um tunisino, uma francesa e um brasileiro unidos num abraço amigo. A voz doce de Gal:
- São Salvador, Bahia de São Salvador, a terra do Nosso Senhor, pedaço de terra que é meu...
Até eles choraram.
Depois vieram outras músicas, todas de carnaval. No meio de tanta alegria eles me pediram para ensinar a dançar aquelas músicas. Daí a pouco estávamos todos pulando, dançando e cantando. De mãos dadas, fazendo roda. Segurando na cintura uns dos outros, fazendo trenzinho. Um carnaval.
Subitamente Grissi para de dançar. Olha surpreso para o alto da escada. Todos paramos sem entender o que estava acontecendo. Seguindo seu olhar, tivemos o mesmo choque.
Lá estava Bouchra.
Parada no alto da escada, meio escondida, observando.
Uma menina morena da cor árabe, cabelos longos levemente ondulados, rosto muito bonito, nos olhos um brilho curioso. Grissi desliga a música, sobe a escada até encontrar a irmã. Diz-lhe alguma coisa, nota-se que ele pede para ela descer. Ela reluta mas começa a descer bem devagar. Fico observando a situação, procurando não olha-la, não constrangê-la. Ámor e Martine também esperam parados, espantados no meio da sala.
Algo extraordinário estava acontecendo, a música, a nossa alegria tinham arrancado aquela menina do quarto. Enquanto Bouchra desce a escada Martine vai até o aparelho de som e recoloca a fita no principio. Os tambores do Olodum voltam a tocar. Ela toma minhas mãos e as de Ámor e recomeçamos a dançar. Bouchra fica olhando.
Grissi a traz pelas mãos, se junta a nós e começa a dançar.
A menina lentamente começa a se mexer. Se movimenta devagar, depois acelera os movimentos e de cabeça baixa, tenta nos acompanhar. Em pouco tempo aquela menina vinda das cavernas do deserto, que vivia trancada num quarto, sem olhar nos olhos de ninguém já estava dançando. Começou sorrindo discretamente, agora já sorria alegremente.
Bouchra descontraía. Bouchra nos acompanhava. Bouchra fazia trenzinho. Ela segurava nossa cintura, nós segurávamos na cintura dela. Ela ria, cantava, dançava. Ela renascia ao som do Olodum.
- É um milagre, dizia Martine eufórica, um milagre brasileiro!