Buzú

Morei num bairro tranquilo e tradicional de Salvador. A Graça não é um bairro grande e é cortada por uma avenida estreita. Esta avenida de apenas três pistas é a espinha dorsal do bairro. Todas as outras ruas deságuam nela.

Uma manhã dessas tomei um ônibus. Um buzú. Estava vazio com apenas algumas pessoas sentadas. Eram umas oito horas da manhã. 
Inesperadamente o buzú que seguia pela avenida de repente para. Não havia trânsito, não havia engarrafamento, também não era um sinal fechado, vermelho. Mas o ônibus parou. E parou em uma esquina.

O cobrador estava lá na frente conversando com o motorista. Cobradores em Salvador não ficam sentados em seus lugares atendendo os passageiros. Eles ficam lá na frente, bem embaixo daquela placa “só fale ao motorista o indispensável”, conversando animadamente com o colega. Sempre.
Ali é o lugar natural dos dois passarem o tempo, aliviarem mutuamente a longa espera pela hora de voltar para casa, para o bar, o futebol, o bloco, a nêga.

O Buzú parou. 
O motorista abriu a porta e o cobrador desceu. E lá foi ele para a esquina. Na esquina havia uma baiana e um tabuleiro. As baianas à tarde vendem acarajés e abarás. Pela manhã vendem bolos, mingaus e sucos .
Em pé, ao lado da baiana, o cobrador gritava para o motorista as opções do tabuleiro,
- Tem mingau de tapioca.
- De milho verde não tem não?
Enquanto isso o ônibus parado começou a provocar um pequeno congestionamento na avenida. Os carros que se dirigiam pela manhã para trabalho e escolas já formavam uma fila à espera das escolhas da dupla. Como a avenida é central o engarrafamento provavelmente já se estendia pelas ruas transversais.
- E tem suco de manga?
- Não, só tem de maracujá e pitanga, vai?
- Que jeito, vai maracujá mesmo. E o bolo? É do quê?

E o engarrafamento aumentando. 
Mas como baiano é paciente e vive num ritmo temporal especial, o Tempus Bahianus, ninguém ainda estava buzinando. Apesar do buzú já estar criando uma situação crítica em todas as imediações.
Nisto uma senhora que estava sentada no ônibus, obviamente uma pessoa estressada e sem o menor axé, resolve interferir nesta cena de fazer Caymmi, sofrendo lá no paraíso coitado, sentir ainda mais saudades da santa Bahia.
- Senhor motorista!

Atenção para a formalidade desta expressão que demonstra a completa falta de sensibilidade e capacidade de contextualização ao meio ambiente desta senhora, que deveria ter se dirigido ao rapaz em termos mais respeitosos. Do tipo,
 – Ô môtô! Ou melhor ainda,
 – Ô meu bró.
Bem, mas infelizmente foi assim mesmo que ela disse,
- Senhor motorista!
- Diga minha tia, respondeu educadamente o rapaz, sem se ofender com a aspereza do tratamento que acabara de receber.
- O senhor não pode parar um ônibus, engarrafar completamente uma rua inteira e deixar seus passageiros à espera que o senhor escolha seu mingau.

O rapaz depois de ouvir palavras tão duras, de um raciocínio tão intolerante e preconceituoso, se levanta atônito. Abre os braços num gesto largo,
- Minha tia... eu tô cum fome, eu tô trabalhanu. Eu preciso mi alimentá.
Uma lógica cristalina, perfeita, irrespondível.
O trânsito que esperasse!