Shakespeare: Igualdade Racial, Clemência e Piedade

O Bardo é definitivo na delicadeza dos versos, na sofisticação do raciocínio, na precisão da palavra. No discurso de Antônio ao lado do cadáver de César, no de Lady Macbeth antes do assassinato de Duncan, na descrição da sexualidade de Cleópatra. No poema em que canta o sorriso da mulher amada. No incendiário discurso de Henry V antes da batalha de Agincourt.
E em “O Mercador de Veneza” quando Shylock, se referindo a Antonio, fala de igualdade racial:

 Ele me humilhou. E tudo, por quê? Por eu ser judeu.
Os judeus não têm olhos? Os judeus não têm mãos, órgãos, dimensões, sentidos, inclinações, paixões? Não ingerem os mesmos alimentos, não se ferem com as armas, não estão sujeitos às mesmas doenças, não se curam com os mesmos remédios, não se aquecem e refrescam com o mesmo verão e o mesmo inverno que aquecem e refrescam os cristãos?
Se nos espetardes, não sangramos?
Se nos fizerdes cócegas, não rimos?
Se nos derdes veneno, não morremos?
E se nos ofenderdes, não devemos vingar-nos?
Se em tudo isso somos iguais a vós, então somos iguais em tudo o mais.

Esta fala foi usada por Lázaro Ramos, num contexto bem diferente de Veneza, no filme Ó Paí Ó, em pleno Pelourinho em Salvador, quando "Você é negro, negro, negro!" foi usado de forma ofensiva pelo personagem de Wagner Moura.
 Sim eu sou negro sim, mas por acaso negro não tem olhos? Negro não tem mão, não tem pau, não tem sentido? Não come da mesma comida, não sofre das mesmas doenças? Não precisa dos mesmos remédios? Quando a gente sua não sua o corpo tal qual um branco? Quando vocês dão porrada na gente, a gente não sangra igual? Quando você fazem graça a gente não ri? Quando vocês dão tiro na gente, a gente não morre também? Pois se a gente é igual em tudo também nisso vamos ser.

A vingança de Shylock está próxima de se realizar quando Antonio fica sem condições de lhe pagar uma dívida de três mil ducados. Antonio tinha dado uma libra da carne do próprio corpo como garantia contratual.
Shylock vai ao tribunal de Veneza exigir a execução do contrato que lhe dá direito a retirar, à sua escolha, uma libra da carne de qualquer parte do corpo de Antônio.
O fim de Antonio se aproxima já que não seria possível lhe retirar uma libra de carne, de onde Shylock escolhesse, e ele escolheu o coração, sem mata-lo. 

Frente a frente com Antonio no tribunal, Shylock com o contrato numa mão e uma faca na outra exige a execução da dívida.
Apesar dos amigos de Antônio se oferecerem para pagar em dobro ou mesmo triplicar o pagamento, Shylock continua irredutível. Exige a libra de carne do inimigo e brada:
 Eu exijo a Lei, eu exijo o cumprimento da Lei!
Todos lhe pedem clemência, os juízes, os advogados, os amigos, até o povo que assiste ao julgamento. Todos clamam por piedade. Mas Shylock insiste no cumprimento do contrato, ele exige a Lei.
Neste momento de alta tensão o Bardo coloca um jovem advogado no tribunal que começa a falar sobre Lei, Perdão e Compaixão. Ele termina o discurso com essas palavras definitivas:
– Quando oras ao teu Deus tu Lhe pedes Justiça ou Clemência?

A Lei organiza os homens em sociedade mas é a Compaixão quem os une e humaniza.