Antonico, Passárgada e Getúlio

Há pistas interessantes da alma brasileira em diferentes partes da sociedade, mas curiosamente idênticas na ideologia. Vindas de Antonico de Ismael Silva, de Passárgada de Manuel Bandeira e de uma frase de Getúlio Vargas.
No samba Antonico um amigo fala ao outro:

Ô Antonico vou lhe pedir um favor
(note a intimidade do diminutivo)
Que só depende da sua boa vontade
(não há competências, a boa vontade é o fator decisivo)
É necessário uma viração para o Nestor
Que está vivendo em grande dificuldade
(não se fala de trabalho, mas de uma "viração")
Ele é aquele que na escola de samba toca pandeiro, toca surdo e tamborim
(este é o curriculum do Nestor)
Faça por ele como se fosse por mim
(sono tutti buona gente, mafiosamente)

O amigo pede a Antonico, baseado apenas na sua boa vontade, que se utilize de sua influencia para resolver o problema financeiro do Nestor que tem apenas o mérito participar das mesmas diversões, de freqüentar o mesmo grupo.
E se pede para ele uma viração, uma benesse, não um trabalho para que ele possa resolver seus problemas.
Uma viração não um trabalho, talvez por que trabalhar ainda carregue pelo menos no imaginário popular, a vergonha da escravidão. Dinheiro se deve conseguir da forma mais fácil, através de uma benesse, de amigos no poder, de uma viração.

Em Passárgada, Bandeira sonha com o melhor dos mundos pois "lá sou amigo do rei, lá terei a mulher que quero na cama que escolherei", aqui a ideologia se revela por trás do sonho.
Além das benesses materiais trazidas pela proximidade do poder, a la Getúlio, lá ele terá a suprema felicidade. Além e acima do amor, em Passárgada ele terá o privilégio de escolher quem, quando e onde.

Mas a pérola definitiva vem de Getúlio:
- Para os amigos tudo, para os inimigos o pesado braço da lei.
A Lei aqui não esta a serviço da Justiça, mas para punir inimigos. Já os amigos merecem tudo e estão acima dela. Uma sociedade talhada para os amigos, sem Justiça e portanto sem crimes.

Um país feito de impunidades, benesses e privilégios onde tudo se arranja desde que haja boa vontade. Boa vontade reservada aos amigos do rei, seja lá qual for o rei em vigor.
Mais interessante é que esta ideologia está presente tanto no povo quanto na elite.
Por isso não é de estranhar que o sentido do Direito Natural tenha aflorado e sido tomado nas próprias mãos pelos deserdados da sociedade. Literalmente à margem do sistema, estes "marginais" utilizam o paradoxo da Justiça fora da Lei para fazer sua própria justiça.

Através de seus crimes estes marginais acabam devolvendo à sociedade sua própria desagregação.
Para desatar esse nó seria preciso esquecer dos antonicos, dos reis e dos sonhos de passárgadas, nesta nação que desde a Descoberta foi tragicamente colonizada, repartida e concedida aos amigos do rei de Portugal.
Estruturando esta relação entre Ismael, Bandeira, Vargas e D. Manuel se percebe uma marca atroz.
A marca da Terrae Brasilis.