Preta, preta, pretinha.

Passei por uma experiencia assustadora que literalmente gelou minha espinha, que me deixou atordoado por dias.
Há sempre uma intolerância latente nas sociedades que ó tempora, ó mores, ó loco, pode se dirigir contra judeus, homossexuais, negros, imigrantes, etc. Agora por aqui ela está bem focada nos fumantes, os discriminados da vez. Por consenso social estes grupos sofrem desrespeito, perseguições. A população se sentido legitimada discrimina impiedosamente. Até aqui nenhuma novidade.

Eis que, morando em Salvador fui um dia ao supermercado. Filas imensas, blá, blá, blá, o usual. Quando estou para finalmente ser atendido, a pessoa que acabara de pagar resolve discutir com a menina do caixa o preço de um determinado produto. Atenção: depois de ter pago.
Claro que a discussão que se prolongava era inútil. A menina aconselhava o cliente a procurar pela gerência, mas o cara estendia e estendia a conversa. Um chato.

Nisso eu me dirijo a ela e no mais puro e castiço baianês lhe peço,
- Ô minha pretinha, adiante aê meu lado.
A menina pulou da cadeira. Ficou de pé, a face transtornada, o dedo em riste me acusando,
- Ele me chamou de pretinha!
Todos pararam para ver o monstro discriminador. Eu.
Algumas pessoas próximas confirmavam,
- Ele chamou a menina de pretinha. Chamou sim, chamou mesmo.
A confusão se estendeu para as filas vizinhas. Eu completamente paralisado me perguntando: onde estou? que cidade é esta?
Me vi sendo acusado de preconceito racial, logo eu que já namorei negras, logo eu que sou apaixonado por Salvador, esta cidade de mais de 96% de mulatos.
Me senti num cenário de Kafka. Era por demais absurdo. Principalmente por ser a expressão intrinsecamente carinhosa. Principalmente por ser na Bahia. Principalmente por ser em Salvador.

Esta terra terá mudado tanto assim, terá se tornado tão igual às outras? A Bahia acabou?
Lá estava eu completamente petrificado. Acabara de rasgar o terceiro e o quinto artigo da Constituição, ferira o Código Civil e o Código Penal. Cometera crime inafiançável.
Iria parar nos jornais. Iria parar por dois a cinco anos na cadeia, mais a multa. Uma tragédia.
Bem pelo menos se eu fosse parar num tribunal, lá também teriam de estar comigo o Moraes Moreira, todo o grupo dos Novos Bahianos, o Luiz Caldas, o Tom Zé, a Bethania e o Caetano Veloso, no mínimo. O promotor teria contra nós pelo menos umas vinte músicas como prova de acusação de crime hediondo.
Lá estaria principalmente o Gilberto Gil que certamente pegaria prisão perpétua por ter afrontado a própria filha lhe batizando de Preta.

A confusão ficou tão grande que saí tranquilamente do lugar. Alguns dias depois reencontrei a mesma menina no caixa. Não resisti e disse,
- Pôrra minha pretinha cê armou o maior fuzuê. Deus é mais!
A pretinha riu.
Ufa! Deve ter sido uma distorção tempo/espaço, nível 5 sigma.