Putzteufel. O Demônio da Limpeza.

Minha mãe, apesar de extremamente católica, era um demônio.
Uma Putzteufel. A palavra alemã para demônio da limpeza, pr’aquelas pessoas que têm mania de limpeza. Organizadíssima abria, no escuro, qualquer gaveta e sabia o que ia encontrar. Ou pelo contrário procurava determinada coisa no escuro e a encontrava.
– Cada coisa em seu lugar, cada lugar com suas coisas.

Cozinhava superbem. Ao terminar a cozinha estava impecável, ela limpava à medida que usava. No final sobrava a pia. Ela limpava e ensinava,
– Uma pia só está limpa quando se pode comer dentro dela, quando se olha para o fundo e se vê o próprio rosto.
Era o terror das domésticas. Quando chegava em casa passava um dedo indicador por todo o chão da sala. Ao final olhava para a ponta do dedo, lançava um olhar mortal para a pobre criatura,
– Está sujo.

Claro que sempre haveria alguma poeira na ponta do dedo. Claro que nenhuma doméstica ficava. À partir de certo ponto nunca mais tivemos nenhuma auxiliar em casa. O que é ótimo em termos de privacidade, disciplina e custos. Além de prevenir tentações para marido e filhos.
Homens se casam com mulheres parecidas ou opostas às suas mães a depender dos traumas de infância. Minha primeira mulher era oposta, a segunda parecida. Marilyn Monroe dizia que os homens preferem as louras mas se casam com as morenas. Casei com as duas.
Uma de cada vez.

A segunda, belíssima, ariana pura, filha de alemães, era uma Putzteufel como minha mãe. Tinha seios menores é bem verdade mas tinha ancas mais largas. As crianças foram disciplinadas na mais perfeita Reinlichkeitserziehung. Em casa havia uma máxima suprema: Gebraucht, Gereinigt, Aufbewahrt,
– Usou, limpou, guardou.
Só não era uma KKK a esposa alemã ideal, Kirche-Kinder-Küche, Igreja-Criança-Cozinha, por que eu adoro cozinhar. Eu brincava,
– Tenho de graça o que todos desejam, uma Haushälterin.
Uma governanta alemã para educar os filhos, como recomendam Machado e Eça.
Não tivemos empregados nunca. Em casa todos dividíamos todas as tarefas. Mas ela se reservava as da limpeza. Não confiava em Auslands - estrangeiros - em raças inferiores, para tarefas tão fundamentais. Dividia o leito mas não a vassoura.

A começar pela cerveja, alemães apreciam o estado puro das coisas.
Cerveja na Alemanha é água, lúpulo, levedura e malte. Mais nada, ponto. Desde 1516 que a Reinheitsgebot, a mais antiga regulamentação alimentar do mundo, estabelece que cerveja só pode ser fabricada assim. Por isso você quase não encontra, talvez nunca encontre, uma cerveja estrangeira nas prateleiras dos supermercados alemães. A legislação não permite o sagrado uso da palavra Bier no rótulo de misturas impuras. Danke Gott.

Quando fomos morar na Alemanha ninguém precisou nos ensinar o conceito da Kehrwoche. Só precisávamos saber qual era a nossa semana de limpar as áreas comuns de onde morávamos. Goethe, o gênio da literatura, o príncipe dos poetas dizia,
– Se todo mundo varrer diante da própria porta logo o bairro inteiro estará limpo.
Não é só um conceito de limpeza. Faça sua parte que eu faço a minha.

Mamãe morreu e está enterrada lá. A família insiste que ela seja transferida para o jazigo da família no Brasil. Jamais, nunca permitirei.
Ela não aceitaria a afronta de passar o resto da eternidade em lugares descuidados.